quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Preparando a festa (Projeto Nemuri - parte 2)

A sala de reunião do castelo estava movimentada. Eram 15 pessoas sentadas à mesa comprida de carvalho, mais as tantas que entravam e saíam de lá com pilhas de papéis para que providências fossem tomadas. A rainha Solsana sentava-se à ponta da mesa ao lado da princesa Olara. À esquerda e à direita das duas estavam os assessores e os cerimonialistas que ajudavam na preparação do aniversário de 14 anos do infante Hinfiki, único filho da princesa com o duque de Rafos, já falecido.

Conforme combinado previamente entre elas, Solsana cuidaria da cerimônia externa, para os súditos que viriam aos jardins do castelo prestigiar a festa, e Olara ficaria com a cerimônia interna, apenas para a alta nobreza do reino de Nianguá, e com a iniciação do pequeno Hinfiki. A rainha havia decidido que a festa começaria com a banda real se apresentando no palco Sul, para em seguida a companhia de dança imperial fazer no palco Norte a encenação da mais clássica das peças do reino: "A Conquista do Leste". Isso tudo deveria durar pouco mais de uma hora e meia. Os presentes assistiriam tudo em pé mesmo, para evitar a confusão e a sujeira que ficou quando cadeiras e bancos foram disponibilizados na Festa da Colheita de dois anos atrás. Entre eles passariam vendedores de pães recheados e suco de waná patrocinados pela corte, com o preço simbólico de 2 tikis.

Findas as apresentações, Solsana apareceria no reduzido palco Leste ao lado da filha, do neto, do primeiro-ministro Iurguel e da baronesa de Sáchia, sua esposa. Um breve discurso seria proclamado pela rainha, seguida por um de Olana e concluído pelo do político. A música voltaria ao palco Sul, desta vez com a voz doce da marquesa de Córis em um show acústico. Por fim, concluindo a cerimônia, a iniciação de Hinfiki no palco Norte. Para que a multidão disperse, os vendedores parariam suas atividades após este último ato e apenas parte da banda real estaria fazendo algum som em solo até que o último presente deixe os portões do castelo. Esse era o esquema geral que era discutido com os ajudantes, buscando sugestões de melhorias logísticas, selecionando fornecedores e tomando decisões.

Olara, por sua vez, era menos decidida que sua mãe. Sua preocupação com as reações de seu filho em sua iniciação, feita para um público gigante, ocupavam parte de sua mente e a impediam de ser mais assertiva quanto aos detalhes. De qualquer forma, o esqueleto do momento estava montado. O jovem (ela diria a criança, mas fora censurada por sua mãe em reservado) entrará no palco e fará apresentações marciais com o bastão, a espada e o arco e flecha. Em seguida, encenará a batalha principal d'A Conquista do Leste ao lado do corpo de atores do reino e por fim o ápice, em que se aplica o Flagelo Puira para mostrar a todos que o rapazinho era de fato um Nemuri.

E aí é que morava a preocupação da princesa. Ela se lembrava de quando passou pelo Flagelo Puira. Os espectadores com os rostos hipnotizados, sabendo que nada aconteceria, mas esperançosos de ver a queda de um membro da família real. Fisicamente, o Flagelo não dói em um Nemuri. Incomoda um pouco, mas não dói. Mas psicologicamente, o efeito sob uma criança (sim, uma criança!) de 14 anos ver todos seus súditos torcendo para que algo dê errado, para que uma festa vire um banho de sangue, para que uma prova de superioridade se transforme em uma falha magistral, é devastador. Ela não gostaria que seu filho passasse por isso, mas sabia da importância da tradição.

Sendo assim, Olara focava esforços na cerimônia interna, essa sim em que Hinfiki seria admirado e quase adorado pelos nobres presentes. Após a iniciação, ele deverá trocar de roupa e vestir o traje de gala para se apresentar no salão de festas do castelo. Lá as 46 famílias de Nianguá com títulos nobiliárquicos elevados estarão sentadas em suas mesas ao redor do corredor em que o moço passará com passos cadenciados sob olhos maravilhados. Subirá os três degraus do pequeno palco do local e fará um curto discurso. Progressivamente, todos os presentes farão uma fila para cumprimentar pessoalmente o futuro rei e nobre guerreiro.

Da mesma forma que sua mãe, a princesa dava ordens e ouvia os conselheiros presentes, selecionando roupas, decoração, instrumentistas e demais pormenores que a situação exigia. Caia a tarde quando Olara chamou o seu filho para a sala. Entrou um rapazinho de pele escura, pouco mais de 1,55 m, cabelos trançados junto à cabeça e roupas soltas com temas geométricos coloridos. Seus olhos pretos ainda carregavam a candura da infância, o que reforçava o instinto de proteção da mãe com relação ao garoto.

- Filho, vá à Sala das Tradições e me aguarde lá. Chego em 10 minutos com sua avó. Hoje teremos uma conversa muito importante, que mudará sua forma de ver a vida e te preparará para a cerimônia daqui três semanas.

- Sim, mãe. Pode deixar!

Ele se despediu com um beijo carinhoso no rosto dela e saiu correndo, com todo o vigor da idade exalando pelos poros. Faltavam menos de 20 dias para que seu ingênuo menino virasse um homem, na mesma idade em que ela deixou de ser uma moça e se tornou mulher. Olara tomou a mão de Solsana, que a fez virar o rosto de forma quase automática, e disse:

- Vamos comigo, mãe! Preciso da sua presença para ter coragem de acabar com o que resta de inocência em Hinfiki.

A rainha notou o pesar no rosto da filha e se compadeceu. Ela se lembrava perfeitamente como fora quando ela e o rei contaram a história dos Nemuri para a princesa; as sensações ruins de trazer de solavanco uma pessoa à vida adulta, a culpa e a responsabilidade por isso. Com uma frase simples, ela encerrou os trabalhos daquele dia, ajeitou os cabelos crespos e grisalhos no coque no alto da cabeça e se levantou, seguida por Olara, ambas saindo em direção à Sala de Tradições.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Formatura (Projeto Nemuri - parte 1)

As longas fileiras de cadetes estavam agrupadas em blocos quadrados geometricamente posicionados na praça Central para a formatura da turma. Tíssio era um dos perfilados, no segundo bloco, terceira linha, sétimo homem contado da esquerda para a direita. Sua ansiedade era grande para ver pela primeira vez o Protetor, general máximo e comandante de toda Lustor. As mãos suavam nervosas mais do que as costas que padeciam sob duas camadas de tecido da farda embaixo do calor forte. O coração batia acelerado, a respiração quase ofegante, os olhos atentos no púlpito montado no palco perto do Monumento do Soldado.

O som ambiente era formado pela junção das conversas dos espectadores, no contorno da formação militar, com o piar de alguns pássaros que atravessavam o campo aberto entre a Praça do Trabalhador e o Bosque da União e o rugido grave e baixo dos motores dos equipamentos militares ao fundo: tanques, carros de transporte e lança-foguetes. O céu estava limpo, com pouquíssimas nuvens bastante altas, sem bloqueio para o sol que ardia impiedoso.

De repente, do canto do palco começaram a surgir enfileirados os generais de exército e os ministros de Estado, todos com farda de gala. O murmúrio da multidão aumentou de volume conforme os comandantes se dispunham ombro a ombro e se encerrou quando o ministro do Exército ocupou o púlpito, ajeitou o microfone e introduziu:

- Atenção a todos os presentes! O vosso silêncio, por favor. Em primeiro lugar, quero agradecer a presença de todos que vieram prestigiar a formatura da 35ª turma de cadetes do Corpo de Batalha de Lustor. Tenho certeza que a minha frente estão os melhores soldados recém-formados que nossa nação pode ter, os mais bravos homens que habitam nossas terras em tenra idade, para servir a todos com alegria e dever. E é em honra a esses nobres cavalheiros que chamo aqui ao palco nosso Salvador, nosso Líder, nosso Comandantíssimo, o Protetor Hícarr!

A multidão explodiu em palmas, vivas e assobios! Os cadetes, contudo, não moveram um fio de cabelo. Mantiveram a posição de sentido que guardavam há quase vinte minutos. Sem que ninguém percebesse, Tíssio ajeitou as pernas, que tremiam, e engoliu a euforia junto com o pouco de saliva que havia em sua boca.

Híccar era um homem alto, de pele morena, cabelos escuros bem aparados e que exalava imponência. Sua sobrancelha desenhava um ar sério em um rosto quadrado e de queixo destacado. O nariz ocupava seu lugar sem se destacar e a boca era um risco na face, quase sem lábios. Não era possível notar como era a barba, uma vez que ele nunca havia sido visto usando uma. Do que era Tíssio conseguia ver do Protetor, os ombros eram largos e o corte da farda evidenciava como ele era musculoso, mas sem exageros. A mão de juntas grossas tocou o microfone, subindo-o um pouco para alcançar melhor sua voz e a multidão, como se ordenada por um maestro invisível, se calou. E então o discurso começou:

- Senhores generais e ministros, meu mais salutar cumprimento. Senhores cadetes, hoje sendo feitos soldados, meus efusivos cumprimentos. A todos os demais cidadãos que testemunham esse momento, senhores e senhoras, jovens e crianças, pais de família, trabalhadores e integrantes das Forças Armadas, meus calorosos cumprimentos. É com muita honra que mais uma vez estou aqui para discursar perante tão distinta plateia, ciente da obrigação que me é colocada nos ombros de saudar e receber esses jovens em nosso corpo de batalha. Jovens que decidiram deixaram suas casas, o conforto do lar com pai e mãe para entrar para uma corporação em que medo e fragilidade não são admitidos. Rapazes que ouviram o chamado do dever e se alistaram por pura iniciativa e força de vontade para ajudar na proteção e expansão de Lustor.

"Quero que os civis fechem os olhos agora e se lembrem de antes da Era da Proteção. De quando Lustor vivia mergulhada no caos e na burocracia de tecnocratas que só sabiam dar ordens de trás de uma mesa. De quando o medo de um ataque vizinho era uma constante. Quando o exército, ou aquilo que se chamava de exército, era pura desordem e anarquia. Generais gordos de óculos escuros desfilavam em carros oficiais mamando privilégios às custas do trabalho digno do cidadão. Agora abram os olhos lentamente. Observem no palco os líderes que temos: respeitados, versados nas artes da guerra e em forma. Obedecidos sem questionamento por seus subordinados porque sabem que eles são os melhores entre os melhores. Vejam os rostos decididos desses nossos soldados, prontos para dar a vida por Lustor, pela sua família e pela nossa população. Agora me vejam. Saímos da barbárie para a mais absoluta ordem graças a mim."

"Não falo isso por ego. Não preciso da adoração de vocês! Preciso da confiança de vocês! Preciso que confiem que continuarei minha tarefa eterna de ser o Protetor de vocês, aquele que não deixa faltar nada a ninguém, que garante a paz e a harmonia de Lustor. Eu trouxe a retidão e a mantenho como única meta em minha vida. E como sei que tenho essa confiança inabalável, quero agradecer a cada um por isso. Por fazer sua parte para o todo, para que possamos continuar caminhando rumo à perfeição. Quero ser grato por cada sorriso que vejo quando me cruzam os olhos, por cada aceno que recebo quando passo. Quero ser grato por confiarem seus filhos a mim, para que eu os faça homens, cidadãos e futuros líderes. Quero, por fim, desejar muito sucesso a todos esses rapazes perfeitamente alinhados à minha frente. Espero que aí embaixo estejam os homens que amanhã estarão aqui comigo celebrando mais uma formatura, desta vez como oficiais."

"Sejam bem-vindos à vida adulta, senhores! Tenentes, distribuam as medalhas! Artilharia, uma salva de sete tiros! Forças Armadas, posição... Sentido!"

Prontamente os do palco se compuseram e fizeram continência voltados para Hícarr. O mesmo fizeram todos os oficiais que estavam também perfilados e os soldados. Tíssio enrijeceu-se mais ainda, estufou o peito e elevou a mão espalmada para baixo na altura do supercílio. Com o primeiro estouro do tiro de comemoração, os civis presentes foram ao delírio, exaltação que durou até após o sétimo tiro e só diminuiu quando o Protetor deixou o palco, seguido de seus comandados diretos.

Os tenentes começaram a distribuir as medalhas aos soldados e só liberou a todos quando o processo foi concluído. Estes saíram ordeiramente em fila até os braços da multidão, que os recebiam em festa, com beijos de mães que não viam seus filhos há meses e abraços de pais satisfeitos por terem criados homens de verdade. Os irmãos, quando conseguiam um espaço, se agarravam às pernas ou ao tronco do militar com afeto. Nosso nobre rapaz demorou quase 40 minutos para achar sua família na meio do povo.

O contingente de Lustor oficialmente acabava de aumentar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Oakhart

A guerra estava perdida. Apesar de ter previsto, Oakhart apenas se deu conta daquilo no exato instante em que os portões frontais foram derrubados, a última barreira que impedia que o flagelo vindo do sul com aço e fogo destruísse os séculos de história de nosso povo e nossa fortaleza.

O guerreiro já havia tomado as providências para que nenhuma preocupação, como família ou posses, atrapalhasse sua ação na última batalha. No Reino de Heerit, os mais altos céus, dedicado apenas aos mais nobres e destacados defensores do Norte, tudo seria recuperado com abundância. Pela manhã daquele mesmo dia, ciente da iminência da derrota, Oakhart beijou a testa de sua amada esposa e a bochecha rosada de sua filha de apenas dois anos. Suas preciosidades não seriam escravas do inimigo! Como exigia a tradição desse tipo de ritual, as duas deitaram-se lado a lado, como se fitassem o teto. O mais delicado tecido, usado em geral como enfeite de cabelos nas comemorações da colheita, foi posicionado sobre os olhos das duas. Em dois golpes firmes e certeiros, ele transpassou o coração de Mearill e da pequena Lilian. Não houve grito, não houve choro, não havia tempo para lamentos. Ele sentia que em breve se reencontrariam...

Com a ajuda do filho mais velho, de 15 anos recém-completos, ele degolou todas as ovelhas que criavam e envenenou a carne delas com folhas de amiúte e vinagre. Pôs fogo em toda aveia e cevada que estava plantada e no estoque que haviam começado a aprontar para o inverno. Em seu âmago, a certeza de que suas terras já não lhe pertenciam mais já tinha raízes fortes, como a árvore de crístilus à beira do rio. Nem por isso, contudo, ele as entregaria intactas ao invasor.

Seu filho conhecia um pouco da arte da luta. Há tempos já sabia montar, manejava um arco com certa destreza e portava uma espada comum com ambas as mãos, ligeiramente desconfortável com o peso da arma. Defendia-se relativamente bem com ela, mas seus ataques ainda eram falhos e desengonçados. Oakhart deu-lhe uma cota de malha, um elmo e uma faca longa e o tomou como seu armador. Tradicionalmente, sabemos que um homem não deve abraçar outro que já esteja em idade de ser varão, mas o guerreiro só via ali um menino de olhos assustados e pés trêmulos. De forma discreta e visivelmente sem jeito, ele se inclinou para frente e apertou a cabeça do filho contra o peito. Não trocaram palavras nem olhares. Depois do afago, trocaram sim nosso cumprimento tradicional, feito apenas por adultos, a única vez que o jovem Siezeth se sentiu de fato um homem pronto.

Após subirem as colinas da lateral da fortaleza em passos rápidos, Oakhart e seu filho armador totalmente equipados se dirigiram à linha de defesa dos muros internos do castelo. Da soleira, os dois viram a extensão do exército acampado à frente dos muros externos. Se o homem já tinha inventado um número para contar aquele contingente, seu nome ainda não havia sido descoberto. Em sua inexperiência, Seizeth perguntou ao pai se todas as pessoas do mundo estavam naquele descampado que chegavam até onde os olhos podiam tocar, mas não obteve resposta.

Quando o sol estava a pino, iniciou-se uma demonstração de engenhosidades, magia e fogo! Uma chuva de flechas, fumaça, trovões e pedras em fogo ardente recobriram o céu. A população, assustada e extenuada pelas quase cinco semanas de cerco, começou a correr desesperadamente para suas casas, apenas para morrer carbonizada quando os telhados de palha, piche e pinho ardiam como piras de oferta aos deuses. Enquanto fazia chover brasas, o inimigo forçava o portão principal com um grande cavalo de madeira, que, quando lhe puxavam o rabo feito de cordame, dava cabeçadas firmes contra as barras de ferro que unia as toras da porta.

Os primeiros batedores começavam a escalada do muro externo. Um destacamento foi indicado para detê-los e Oakhart fazia sua retaguarda. Entre flechas, espadas, gritos e sangue, o inimigo era afastado a cada investida por cima, mas brotava incessantemente, como formigas que saem de um formigueiro quando o cavalgar lhes ameaça a moradia. O guerreiro quase não ouviu o grito de "Pai!" que Seizeth emitiu do fundo dos pulmões quando um ofensor surpreendeu o jovem e o feriu na perna. Impossibilitado de salvar a vida do filho, e esperando para ele uma morte digna de um bravo lutador, só devolveu um "Lute!" feroz. Com a garganta cortada por um golpe profundo ele não emitiu mais som nenhum, e Oakhart bateu em retirada com o que restou do destacamento para lutar ao lado de nosso Rei sem conseguir recolher o corpo do rapaz. Tudo o que pôde fazer foi pedir a Faar que guiasse sua alma para Heerit.

O início da chuva em nada aplacou o inferno que se espalhava em chamas que lambiam as riquezas do nosso reino com desdém. Um trovão foi ouvido segundos antes do barulho do Grande Portal ser arrebentado, a fronteira entre o mundo externo e o interno. Nosso Rei agradeceu a todos os presentes pelos anos de serviço ao seu lado e bradou a ordem do último ataque de resistência. Inútil em se tratando de deter nossa capitulação, mas fiel aos mais nobres princípios do nosso povo de nunca desistir. Sobre seu cavalo, ele abriu caminho entre as primeiras fileiras de inimigos e decapitou quantos pôde. Todos os demais nobres o seguiram em suas montarias e os guerreiros de chão vieram após, Oakhart inclusive.

Naquela luta não se usaria técnica, maestria ou destreza. A força bruta imperava e o objetivo era incapacitar o maior número de ofensores, para que entre os espólios da guerra ficassem centenas de doentes e feridos. A vitória lhes custaria caro e o sabor doce da conquista demoraria a tocar as bocas inundadas de sangue, gemidos, pus e feridas.

Oakhart bradava e trabalhava o fio da espada agressivamente. Nem fez questão de contar os corpos, como é nosso costume, porque não haveria banquete de vitória para se gabar dos feitos. Avançava como uma broca perfura o tronco de uma árvore, cuja casca permanece aparentemente intacta, mas a seiva escorrendo denuncia a profundidade dos danos causados.

Enfim sentiu algo rasgar sua panturrilha. Seguiu em frente mancando, com a fúria de 20 homens em um só e abatendo ou ferindo gravemente mais um punhado de inimigos. Na costela, uma adaga foi depositada com força e torcida, o que o fez urrar e cair de joelhos. Abandonou a espada e tirou a faca longa da cintura. Naquela posição, só foi capaz de abrir mais dois abdomens, antes que uma série de espadas fosse ao encontro de seu ombro e flanco. No chão, tentou erguer o braço para ainda agarrar algum infeliz e arrastá-lo consigo para a morte. Um golfo de sangue possuiu sua garganta antes que tivesse essa oportunidade e, olhando para o céu nublado entre as botas que se dirigiam ao seu rosto, viu a carruagem de fumaça puxada por corvos de Faar. Sorriu. Sim, Heerit era sua próxima parada e meu filho viria ao meu encontro.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A criação (parte 2)

Primeira parte: A criação (parte 1)

Tudo o que havia se resumia ao Espaço e às três entidades. Não que fosse pouco, por que se trata de tudo o que temos ao nosso redor hoje e tudo o mais que nem sabemos ainda que existe. Contudo, Nalus não negou sua essência e decidiu criar. Com seu poder infinito, em seu primeiro esforço criou todos os tipos de energia possíveis, que de fato é uma só, mas assim como um cubo tem diversos lados e é um só, assim é a primeira obra de Nalus.

Cheio de energia, o Espaço regozijou e torceu para que, à semelhança de seu irmão, Trifan e Cuzio se manifestassem. O primeiro tentou destruir toda a energia que seu gêmeo criou, mas uma piscada do segundo fez com que o ato fosse transformado em separação. Assim, parte da energia virou matéria, parte se fez massa e o restante ficou como estava. A confusão generalizada do toque de duas entidades ao mesmo tempo causou uma enorme explosão, e até hoje é possível ver traços do acontecimento se você olhar fixamente para o céu por bastante tempo.

A ruptura causada foi enorme! O Espaço, que tudo via distraidamente, como quem observa filhos brincarem numa caixa de areia sem se atentar aos detalhes, assustou-se com a abrupta mudança de cenário. E em um movimento de todo involuntário, quase o Espaço volta a ser Tempo e tudo teria um fim sem nem ter começado. Como nós, seres humanos, estamos aqui para contar a história, obviamente não foi isso que aconteceu, e apesar de nada se saber sobre como o Espaço conteve-se e permaneceu, é sabido que o tempo iniciou-se aí. Só a partir deste acontecido é que pode se falar com propriedade em antes e depois, e toda vez que se usa essas palavras antes deste ponto é pura metáfora literária.

A explosão inicial, aquela que fez o tempo começar a contar dentro do Espaço, foi tão encantadora e maravilhosa, apesar de inesperada, que nenhum deles interferiu enquanto matéria, massa e energia se espalhavam por todo o Espaço. A falta de interação entre esses elementos, contudo, intrigava Nalus. Era como se cada um fosse transparente a tudo ao seu redor e ele percebeu que nada de concreto sairia dali. Infeliz com o rumo que sua criação estava tomando, Nalus interferiu novamente. Um movimento singelo e as interações foram criadas por ele, fazendo com que surgisse o que hoje chamamos de força. Assim como a energia, todos os tipo de força foram criados, apesar da força ser uma só, o que até hoje é um mistério dentro do conhecimento.

Trifan, reativo mais do que criativo, porém também infinitamente inteligente como seus irmãos, resolveu por seus dedos naquelas infindáveis interações que surgiram, desta vez agindo com cautela para evitar as interferências de mau gosto do aparentemente inconsequente Cuzio. Ao invés de acabar com as interações, aumentou-lhes a potência para que o encontro de duas partes de energia aniquilasse ambas e o encontro de duas partes de massa se agregasse ao ponto de nunca mais se separarem e atraírem cada vez mais massa. Inevitavelmente, pensou o ente da destruição, era só aguardar tempo o suficiente para que tudo fosse destruído.

Todos se surpreenderam. Trifan deu um golpe de mestre, sua essência se manifestou de forma alternativa ao tradicional e tirou todos do eixo. O Espaço se encolheu levemente por um período mais curto do que qualquer mísero instante, e só depois voltou a se expandir. Nalus nem se deu conta que criou um, e apenas um, ponto absoluto de energia, que até hoje vaga como singularidade por aí na imensidão. Já Cuzio foi além...

O mais novo entendeu o que acontecia e enxergou potencial. O espanto deu lugar ao brilhantismo, o choque abriu margem para a novidade. Cuzio mexeu nas regras! Sim, a energia, a matéria e a massa que Nalus criou ficariam lá, bem como as respectivas interações. Sim, as aniquilações de Trifan permaneceriam, bem como os aglomerados que a tudo sugam. Mas Cuzio decidiu que o infinito não mais seria a regra absoluta. Assim, ele transformou as existências e inventou o limite. E com o limite, estava estabelecido o equilíbrio, a base do sistema do nosso saber.

A perfeição do que estava a sua frente tocou o Espaço. Poucos dos nossos segundos haviam se passado desde o início do tempo, mas sua sabedoria eterna percebeu que aquilo era bom e deveria perseverar, mesmo à custa dele ter que interferir. Gigante demais para deter os dois irmãos antagônicos, mas ainda com todo o poder que lhe era intrínseco, mais poderoso do que as três entidades somadas, o Espaço respirou fundo e usou de seus atributos para acabar com o embate antes que tudo se transformasse em nada e em tudo e em nada eternamente. Sua voz foi ouvida pela segunda vez em toda a existência:

- Nalus! Trifan! Eu ordeno que se juntem a mim!

Nenhum dos dois tinha ideia do que aquilo significava, mas obedeceram prontamente. Em milhões de bilhões de trilhões de pedaços, ambos se desagregaram e passaram a fazer parte do Espaço e o encontro proposital de cada pedacinho de um com o de outro dourou o céu de fagulhas por incontáveis Períodos, que se juntaram em Eras, que se aglomeraram em Éons até que, por fim, quase tudo ficou escuro.

Ali, Cuzio chamou pelo seu Originador e pelos seus irmãos e não obteve resposta de ninguém. Sentia o Espaço ali, mas como algo e não mais alguém. Seus pares, contudo, não mais percebia; estejam mesclados ou banidos, ele nunca mais teve contato de forma alguma. A sua frente, a infinidade de possibilidades se abriu para o Transformador. Querendo esquecer a saudades que sentia de companhia, renomeou o Espaço como Universo e passou a tratar tudo como seu.

P.S.: agradecimentos especiais ao colega dos Contos Medievais, que, com um e-mail, criou a fagulha para continuar este conto.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Vitória (parte 1)

Eu havia caminhado pela neblina por algumas semanas, somente com os suprimentos que carregava nas costas. Meu querido cavalo Kalorus não suportara dois dias de viagem depois da batalha de Oboupur, e tive que sacrificá-lo perto da Ponte Ágata.

Andar sem enxergar mais de 10 metros a frente já é um desafio absurdo. Quando se está em território desconhecido, dentro de região pantanosa e racionando comida, a tarefa passa a ser uma epopeia! E essa foi minha situação por um bom tempo...

Devo admitir que, em qualquer situação, há coisas boas para se tirar proveito. O isolamento, o silêncio e a privação me fizeram olhar para dentro, refletir comigo mesmo sobre o porquê de ser um guerreiro e um conquistador. Fui colocado frente a frente com cada alma que arranquei do corpo com o fio da espada e a explosão dos meus músculos. Pude, pela primeira vez na vida após um embate, ponderar a razão de viver e deixar de pensar em voltar para casa apenas para me esbaldar com as mulheres do castelo. A conclusão não veio de sopetão, mas a cada minuto se tornava mais evidente: eu precisava de alguém para quem regressar.

Uma mulher que ficasse aflita ao me ver partir, que me odiasse por eu ter escolhido a guerra como fonte de riqueza, que sorrisse largamente ao me ver voltar de uma campanha e cuidasse de meus ferimentos até que a próxima incursão se anunciasse. Ela carregaria meus filhos no ventre com orgulho e iria ensiná-los o amor e a retidão, enquanto eu os lecionaria a arte do combate e os princípios que regem a honra de um guerreiro. As filhas que fossem fruto de nossa paixão seriam as mais belas e gentis do reino, carinhosas como a mãe e dedicadas como o pai.

Apesar da fome, do cansaço, do sono e de tudo o mais que a exaustão traz a reboque, essa motivação empurrava minhas pernas uma após a outra. Perto da fronteira do charco com a planície, uma luz trêmula e amarela brilhou no horizonte, rompendo o véu esbranquiçado da neblina. Senti que era meu sinal e caminhei determinado naquela direção.

Uma fogueira! Eu havia encontrado vida após tantos dias andando só e a esmo! Sendo mais sortudo do que cauteloso, me aproximei daquela clareira sem maiores preocupações e não encontrei resistência. Havia comida fresca, água e algumas frutas silvestres junto às chamas, mas nenhum ser vivo. Contudo, antes que eu pudesse mover um músculo em direção aos suprimentos, senti uma adaga tocar meu pescoço. Sem entrar em pânico por um segundo sequer, notei que, quem quer que fosse o agressor, tinha um cheiro suave de flores do campo.

Uma voz firme, mas doce como o toque da harpa, ordenou: "Ajoelhe-se sem movimentos bruscos ou lhe tiro a vida!". Obedeci o pedido, mas, sendo versado na arte da luta, não me contive e tentei surpreendê-la puxando sua perna e provocando sua queda. Com os reflexos de um felino, ela pulou, evitou o tombo, ajoelhou-se sobre meu abdômen e enterrou a pequena faca em meu ombro.

A dor já era minha companheira havia dias, e aquela agressão já não fazia mais diferença. Agarrando firmemente um de seus braços, girei-a em direção à luz da fogueira e me deparei com uma imagem que escultor nenhum conseguiria reproduzir com perfeição. Uma mulher de cabelos longos e ondulados olhava para mim com ódio. Sua pele lisa enchia-se de rugas com aquela feição, mas sua beleza não conseguia se ocultar. Olhos tão escuros como a própria noite refletiam a chama vacilante atrás de nós e miravam o fundo dos meus olhos, provavelmente buscando minha alma.

Afastei-a de mim como pude, receoso de que ela conseguisse encontrar uma brecha em meu cansaço e piorasse o ferimento. Sua postura era de estado selvagem puro: os dentes à mostra, os pés calçados em sapatilhas rudimentares firmemente apoiados no chão e prontos tanto para avançar quanto para recuar, os braços próximos ao corpo sustentando o equilibrio do conjunto. Antes que qualquer movimento seguinte se fizesse, rolei mais uma vez para trás e pus-me de pé enquanto tentava acalma-la:

- Não temas, mulher. Não quero causar-lhe mal algum. - Calmamente desatei o cinto em que carregava a espada e o deixei cair no chão. - Caminho há mais tempo do que gostaria por esse local desconhecido e somente quero um lugar seguro para descansar e algo que preencha meu estômago além dos pequenos animais que encontrei pelo caminho. Aceite minha pequena reserva de água restante como prova da veracidade do que digo.

Sem pressa, tirei a bolsa de couro que carregava cruzada sobre o ombro e a joguei os pés daquela ninfa acuada, que diminuia a tensão dos músculos e trocava a expressão de agressão por uma de desconfiança. Também chutei a espada para mais longe de mim, tentando mostrar cooperação. Obviamente, a faca que trazia na parte de dentro da bota permaneceu lá por precaução.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Guerra e Sangue (parte 2)

Primeira parte: Guerra e Sangue (parte 1)

Ranik, mantendo o grito ainda por alguns segundos, retirou seu machado das costas e apontou para o exército inimigo. Simultaneamente, começou a correr em direção a eles, seguido de perto por seus liderados.

Do lado dos molitas, em vista da movimentação dos invasores, a dança ritual parou e gritos de ordem puderam ser ouvidos, sem que se fosse capaz de detectar a origem do som, contudo. Do chão, eles puxaram seus escudos quadrados de madeira escura e formaram uma parede. O choque da força contra a resistência seria o primeiro ato do teatro marcial.

O General se aproximava velozmente com seu exército, mas diminuiu o ritmo para permitir que o encontro violento entre corpos, espadas e a muralha negra de escudos se desse entre os mais empolgados: geralmente os mesmos que se perdiam na adrenalina e morriam no início da batalha.

Ranik, então, ordenou ao segundo destacamento que flanqueasse pela direita assim que a guarda inimiga fosse desafiada pela primeira batida, forçando ao extremo a tática e a organização molita.

As primeiras vidas eram ceifadas quando o líder dos ueltas teve a visão que queria: na terceira fileira atrás dos escudos, gesticulando sutilmente e falando alto, todavia sem chamar atenção, um molita de cabeça raspada e pele avermelhada ditava os movimentos do exército nativo.

Vendo que estava sendo flanqueado, o homem careca falou uma ou duas palavras incompreensíveis e o bloco molita de pouco menos de dez mil elementos dividiu-se em dois. Surpreendentemente, o segundo bloco deixou o primeiro e partiu para a ofensiva. Estava instalada a guerra total.

Esse é, sem dúvidas, o pior cenário possível para os comandantes. Levados pela fúria, pela emoção e até pelo instinto de sobrevivência, os combatentes param de obedecer cegamente (fundamental para que qualquer estratégia funcione) e começam a tentar matar o maior número possível de adversários, indiscriminadamente. Assim, perde-se a organização, perdem-se combatentes e, o puor dos efeitos, perde-se muito Sangue, que escorre dos corpos mutilados e serve aoenas para tingir o campo de batalhas.

Ciente desse risco e fazendo uso de sua experiência e sabedoria vindos principalmente do Sangue acumulado, Ranik ordenou o reagrupamento em células. Os soldados ueltas, nessa formação, devem formar grupos compactos de até quinhentos homens e manter a defensiva. O General, assim, pretende reduzir as baixas de seu lado e diminuir a violência dos assassinatos, deixando mais Sangue disponível ao final da luta.

O líder molita, que Ranik percebeu que era chamado de Vina pelos companheiros, mostrou-se surpreso. Também vociferou algumas ordens, que eram replicadas para o próximo por cada combatente de seu exército, e resolveu atirar-se um movimento extremamente inusitado e arriscado.

Tendo sido identificado por Vina como líder uelta e potência de Sangue, Ranik virou alvo de todos os molitas! Às dúzias, eles se atiravam contra o General para matá-lo e eram dizimados, um a um. O trunfo molita de igualdade mostrou seu lado perverso: não havia um homem capaz de, sozinho, tirar a vida desse guerreiro.

Quase quatro horas de combate haviam transcorrido e o resultado começava a ficar ruim para os donos das terras, com muitas baixas e a frustração ameaçando tomar seus corações. Vina, atento a isso, agachou-se, tomou um punhado do solo pedregoso nas mãos, esfregou, assoprou e jogou para o alto.

Antes que os pedriscos voltassem a tocar o chão, um estrondo de trovão sobrepôs-se às vozes que gritavam naquele vale. Repentinamente, uma chuva caldalosa arremessou-se com fúria dos céus sobre os indivíduos.

Sem que Ranik pudesse entender o porquê, todos ali começaram a ficar manchados em sua pele, com tons que variavam do amarelo Sol ao vermelho da brasa. Com um sorriso de satisfação no rosto, pela primeira vez naquele dia o líder molita gritou. Foram duas sílabas esbravejadas, repetidas por seus companheiros. Foi o marco da reviravolta.

O General observou atentamente o movimento adversário. Todos eles, que ficaram com a pele alaranjada após o início do temporal, atacavam impiedosamnete os ueltas que tinham o amarelo estampado em si, mesmo se em formação ou defendidos.

Olhando para o próprio braço, o líder uelta viu que o vermelho intenso era a cor que o cobria e compreendeu a magia dos nativos. Incapaz, pela primeira vez em sua longa vida, Ranik ordenou a retirada. Seus soldados mais rasos estavam sendo massacrados e o exército rapidamente perdia volume. Por terem o Sangue fraco, os jovens guerreiros não eram poupados do esquartejamento promovido pelos molitas.

Apesar de tudo, o General não estava de todo despreparado. A tática para recuar e se retirar fora treinada e, pela primeira vez desde que assumiu o exército, foi posta em prática. Cada uelta deveria carregar um corpo que tivesse perdido menos Sangue possível e recuar até o ponto acordado.

Ranik não se deu esse trabalho. Caminhou de costas, com o olhar fixo em Vina, que retribuiu com alívio no semblante. Os ueltas voltariam furiosos e mais preparados, isso era fato, mas com muito mais respeito também. O General fervia de raiva e viria para a revanche. Entretanto, não em um futuro próximo. A paz provisória dos molitas estava conquistada.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Extrema-Unção (parte 2)

Primeira parte: Extrema-Unção (parte 1)

Uma semana separava a saída de Daniel do hospital de sua saída de casa naquele dia. Neste período, o rapaz não tinha tomado conhecimento de nenhum outro anjo pelos lugares em que esteve, levando-o a pensar que tudo aquilo podia ser efeito colateral de algum remédio que lhe fora administrado. Contudo, a fé que habitava seu coração - que havia voltado a habitar, na verdade - era a única prova de que precisava.

Convidado por sua tia Maria, o jovem decidiu ir à missa na igreja em que fora batizado, primeiro passo religioso que daria para sua retomada no caminho do Senhor. Ao fim da celebração, ele ainda permaneceu algum tempo recebendo palavras de incentivo de alguns fiéis, que acompanharam a agonia da família pelas fofocas de bairro, e respondendo perguntas de curiosos. Após a sabatina, ajoelhou-se e orou mais um pouco em agradecimento e ação de graças. Quando ergueu a cabeça, notou que na igreja só restavam ele, sua tia e o padre, estes dois conversando animadamente. Contudo, ouviu um hino ser assobiado ao fundo e, quando virou de costas, viu que um faxineiro varria o piso do templo.

Com uma explosão silenciosa, um clarão emanou das costas do rapaz que passava a vassoura. Rafael não era o único; aquilo não foi alucinação! O servente, então, ergueu a cabeça, sorriu para Daniel, cessou o assobio e caminhou em direção ao rapaz. Sentou-se ao seu lado - Daniel maravilhado com a visão - e falou baixo, mas totalmente audível: "O inimigo já sabe da sua existência. Seja firme na fé e não sucumba à tentação." O anjo sorriu mais uma vez, olhando no fundo dos olhos do ungido, e partiu, voltando a assobiar o hino. Deixou a igreja antes que Daniel pudesse apresentar qualquer reação.

O chamado de sua tia para partirem tirou-o da inanição. As palavras do ser que nem ao menos se apresentou martelavam sua cabeça enquanto caminhavam de volta para casa. Tia Maria, todavia, nem notou as feições de preocupação do sobrinho e pediu que entrassem em uma loja de departamento no quarteirão seguinte. O sobrinho concordou com a cabeça, muito provavelmente sem saber com o que assentia. Enquanto a senhora olhava cobertores e edredons, o rapaz foi à seção de eletrônicos.

No momento em que saiam sem terem comprado nada, o alarme antifurto disparou. Na mesma hora, Daniel sentiu uma mão pesada tocar em seu ombro e uma voz intimidadora falar-lhe: "Rapaz, o dono desta loja gostaria de conhecê-lo. Você pode me acompanhar, por gentileza?". Sem muita alternativa, quase que carregado pelo segurança, ele foi levado da frente para os fundos da loja, onde os escritórios ficavam. Sua tia protestava impotente enquanto via o sobrinho ser levado. A memória do sequestro ainda estava muito fresca na mente dela...

A sala em que Daniel aguardava era decorada de maneira sóbria: poucos quadros na parede azul escuro, luz indireta e uma mesa grande de madeira, que lembrava a de salas de grandes executivos. De uma porta lateral, diferente daquela pela qual ele fora empurrado para dentro, sai um homem que aparentava seus 40 e poucos anos. O terno cinza escuro muito bem alinhado, o cabelo penteado para trás com gel e a retidão do caminhar não combinavam com o fato de ser dono de uma loja de bairro.

O homem misterioso sentou em sua cadeira, inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos sobre a mesa, o queixo sobre os punhos cerrados e sorriu. Um calafrio percorreu a espinha de Daniel; ele se esforçava para não tremer nem sucumbir às lembranças do sequestro. Aos poucos, um cheiro de carne queimada foi tomando conta do lugar, sem fonte aparente. O dono da loja não se mexia, exceto pelos olhos que fitavam alternadamente a face e o tronco de rapaz.

Subitamente, uma fumaça negra começou a brotar das costas do homem de terno, formando uma sombra do que pareciam asas, mas com um aspecto incerto e macabro, quase como as asas de um dragão medieval. "Não se assuste, Ungido! Vamos conversar...".

Daniel paralisou. Seus olhos arregalados fixavam posição nos olhos da criatura a sua frente, que parecia ter chamas brilhando na pupila que se dilatava aos poucos. Instintivamente, começou a orar, pouco prestando atenção nas palavras que resmungava, mas buscando dentro de si toda fé que havia resgatado e retomado.

"A guerra é contada pelos vencedores, meu caro!", disse aquele ser perturbador. "Mas você já ouviu a nossa versão? Já parou para pensar por que os anjos pedem desesperadamente que nenhum humano nos dê ouvido? Será que não é porque nós temos uma parte da verdade que não lhes convém?"

"Pode me chamar de Samael." O demônio estendeu a mão como quem pede para ser cumprimentado. Daniel hesitou e não se mexeu (provavelmente não conseguiria nem se quisesse), o que, aparentemente, não foi tomado como insulto. "Ok, respeito seu temor. Não vou segurá-lo aqui por mais tempo porque agora você está em evidência e eu não quero esses holofotes para mim. Serei breve em meu relato:"

"Como um cristão praticante, você conhece a versão angelical da queda do grande Lúcifer. Saiba, contudo, que o que ele realmente queria não era o lugar do Jeová, mas que o conhecimento que ele detém fosse disseminado. Que a ditadura do orbe superior acabasse! A guerra que se seguiu à tentativa do Primeiro Caído de encontrar a fonte da sabedoria suprema foi provocada unicamente pela incitação da massa de anjos bitolados e sem personalidade pelo dito Todo-Poderoso!" Daniel, sem perceber, parou de rezar. Começou a prestar mais atenção ao que Samael dizia.

"Agora é evidente para mim que perderíamos, mas nossa ideologia nos levou a entrar na batalha direta e frontal com dois terços dos habitantes celestes! Fomos exilados após a derrota e refundamos o céu em um orbe inferior. Tudo o que queremos é o conhecimento supremo que aquele ditador prepotente guarda só para si... Você, na posição de Ungido, ou Esclarecido, como nós preferimos, é uma peça chave para balancear essa busca." Um instante de silêncio se fez. Os dois se olhavam compenetradamente. Nenhum músculo era movido por eles.

"Pode ir agora, rapaz! Pense no que te falei e volte sempre que quiser, dizendo que precisa falar com o senhor Geheimgang." As asas negras saíram de cena, o cheiro da sala voltou a ser de madeira e tinta. Samael, ou Sr. Geheimgang, levantou-se e saiu pela porta que entrou. A tranca da porta pela qual Daniel foi jogado ali dentro se fez ouvir abrindo.