quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Formatura (Projeto Nemuri - parte 1)

As longas fileiras de cadetes estavam agrupadas em blocos quadrados geometricamente posicionados na praça Central para a formatura da turma. Tíssio era um dos perfilados, no segundo bloco, terceira linha, sétimo homem contado da esquerda para a direita. Sua ansiedade era grande para ver pela primeira vez o Protetor, general máximo e comandante de toda Lustor. As mãos suavam nervosas mais do que as costas que padeciam sob duas camadas de tecido da farda embaixo do calor forte. O coração batia acelerado, a respiração quase ofegante, os olhos atentos no púlpito montado no palco perto do Monumento do Soldado.

O som ambiente era formado pela junção das conversas dos espectadores, no contorno da formação militar, com o piar de alguns pássaros que atravessavam o campo aberto entre a Praça do Trabalhador e o Bosque da União e o rugido grave e baixo dos motores dos equipamentos militares ao fundo: tanques, carros de transporte e lança-foguetes. O céu estava limpo, com pouquíssimas nuvens bastante altas, sem bloqueio para o sol que ardia impiedoso.

De repente, do canto do palco começaram a surgir enfileirados os generais de exército e os ministros de Estado, todos com farda de gala. O murmúrio da multidão aumentou de volume conforme os comandantes se dispunham ombro a ombro e se encerrou quando o ministro do Exército ocupou o púlpito, ajeitou o microfone e introduziu:

- Atenção a todos os presentes! O vosso silêncio, por favor. Em primeiro lugar, quero agradecer a presença de todos que vieram prestigiar a formatura da 35ª turma de cadetes do Corpo de Batalha de Lustor. Tenho certeza que a minha frente estão os melhores soldados recém-formados que nossa nação pode ter, os mais bravos homens que habitam nossas terras em tenra idade, para servir a todos com alegria e dever. E é em honra a esses nobres cavalheiros que chamo aqui ao palco nosso Salvador, nosso Líder, nosso Comandantíssimo, o Protetor Hícarr!

A multidão explodiu em palmas, vivas e assobios! Os cadetes, contudo, não moveram um fio de cabelo. Mantiveram a posição de sentido que guardavam há quase vinte minutos. Sem que ninguém percebesse, Tíssio ajeitou as pernas, que tremiam, e engoliu a euforia junto com o pouco de saliva que havia em sua boca.

Híccar era um homem alto, de pele morena, cabelos escuros bem aparados e que exalava imponência. Sua sobrancelha desenhava um ar sério em um rosto quadrado e de queixo destacado. O nariz ocupava seu lugar sem se destacar e a boca era um risco na face, quase sem lábios. Não era possível notar como era a barba, uma vez que ele nunca havia sido visto usando uma. Do que era Tíssio conseguia ver do Protetor, os ombros eram largos e o corte da farda evidenciava como ele era musculoso, mas sem exageros. A mão de juntas grossas tocou o microfone, subindo-o um pouco para alcançar melhor sua voz e a multidão, como se ordenada por um maestro invisível, se calou. E então o discurso começou:

- Senhores generais e ministros, meu mais salutar cumprimento. Senhores cadetes, hoje sendo feitos soldados, meus efusivos cumprimentos. A todos os demais cidadãos que testemunham esse momento, senhores e senhoras, jovens e crianças, pais de família, trabalhadores e integrantes das Forças Armadas, meus calorosos cumprimentos. É com muita honra que mais uma vez estou aqui para discursar perante tão distinta plateia, ciente da obrigação que me é colocada nos ombros de saudar e receber esses jovens em nosso corpo de batalha. Jovens que decidiram deixaram suas casas, o conforto do lar com pai e mãe para entrar para uma corporação em que medo e fragilidade não são admitidos. Rapazes que ouviram o chamado do dever e se alistaram por pura iniciativa e força de vontade para ajudar na proteção e expansão de Lustor.

"Quero que os civis fechem os olhos agora e se lembrem de antes da Era da Proteção. De quando Lustor vivia mergulhada no caos e na burocracia de tecnocratas que só sabiam dar ordens de trás de uma mesa. De quando o medo de um ataque vizinho era uma constante. Quando o exército, ou aquilo que se chamava de exército, era pura desordem e anarquia. Generais gordos de óculos escuros desfilavam em carros oficiais mamando privilégios às custas do trabalho digno do cidadão. Agora abram os olhos lentamente. Observem no palco os líderes que temos: respeitados, versados nas artes da guerra e em forma. Obedecidos sem questionamento por seus subordinados porque sabem que eles são os melhores entre os melhores. Vejam os rostos decididos desses nossos soldados, prontos para dar a vida por Lustor, pela sua família e pela nossa população. Agora me vejam. Saímos da barbárie para a mais absoluta ordem graças a mim."

"Não falo isso por ego. Não preciso da adoração de vocês! Preciso da confiança de vocês! Preciso que confiem que continuarei minha tarefa eterna de ser o Protetor de vocês, aquele que não deixa faltar nada a ninguém, que garante a paz e a harmonia de Lustor. Eu trouxe a retidão e a mantenho como única meta em minha vida. E como sei que tenho essa confiança inabalável, quero agradecer a cada um por isso. Por fazer sua parte para o todo, para que possamos continuar caminhando rumo à perfeição. Quero ser grato por cada sorriso que vejo quando me cruzam os olhos, por cada aceno que recebo quando passo. Quero ser grato por confiarem seus filhos a mim, para que eu os faça homens, cidadãos e futuros líderes. Quero, por fim, desejar muito sucesso a todos esses rapazes perfeitamente alinhados à minha frente. Espero que aí embaixo estejam os homens que amanhã estarão aqui comigo celebrando mais uma formatura, desta vez como oficiais."

"Sejam bem-vindos à vida adulta, senhores! Tenentes, distribuam as medalhas! Artilharia, uma salva de sete tiros! Forças Armadas, posição... Sentido!"

Prontamente os do palco se compuseram e fizeram continência voltados para Hícarr. O mesmo fizeram todos os oficiais que estavam também perfilados e os soldados. Tíssio enrijeceu-se mais ainda, estufou o peito e elevou a mão espalmada para baixo na altura do supercílio. Com o primeiro estouro do tiro de comemoração, os civis presentes foram ao delírio, exaltação que durou até após o sétimo tiro e só diminuiu quando o Protetor deixou o palco, seguido de seus comandados diretos.

Os tenentes começaram a distribuir as medalhas aos soldados e só liberou a todos quando o processo foi concluído. Estes saíram ordeiramente em fila até os braços da multidão, que os recebiam em festa, com beijos de mães que não viam seus filhos há meses e abraços de pais satisfeitos por terem criados homens de verdade. Os irmãos, quando conseguiam um espaço, se agarravam às pernas ou ao tronco do militar com afeto. Nosso nobre rapaz demorou quase 40 minutos para achar sua família na meio do povo.

O contingente de Lustor oficialmente acabava de aumentar.

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