Primeira parte: Extrema-Unção (parte 1)
Uma semana separava a saída de Daniel do hospital de sua saída de casa naquele dia. Neste período, o rapaz não tinha tomado conhecimento de nenhum outro anjo pelos lugares em que esteve, levando-o a pensar que tudo aquilo podia ser efeito colateral de algum remédio que lhe fora administrado. Contudo, a fé que habitava seu coração - que havia voltado a habitar, na verdade - era a única prova de que precisava.
Convidado por sua tia Maria, o jovem decidiu ir à missa na igreja em que fora batizado, primeiro passo religioso que daria para sua retomada no caminho do Senhor. Ao fim da celebração, ele ainda permaneceu algum tempo recebendo palavras de incentivo de alguns fiéis, que acompanharam a agonia da família pelas fofocas de bairro, e respondendo perguntas de curiosos. Após a sabatina, ajoelhou-se e orou mais um pouco em agradecimento e ação de graças. Quando ergueu a cabeça, notou que na igreja só restavam ele, sua tia e o padre, estes dois conversando animadamente. Contudo, ouviu um hino ser assobiado ao fundo e, quando virou de costas, viu que um faxineiro varria o piso do templo.
Com uma explosão silenciosa, um clarão emanou das costas do rapaz que passava a vassoura. Rafael não era o único; aquilo não foi alucinação! O servente, então, ergueu a cabeça, sorriu para Daniel, cessou o assobio e caminhou em direção ao rapaz. Sentou-se ao seu lado - Daniel maravilhado com a visão - e falou baixo, mas totalmente audível: "O inimigo já sabe da sua existência. Seja firme na fé e não sucumba à tentação." O anjo sorriu mais uma vez, olhando no fundo dos olhos do ungido, e partiu, voltando a assobiar o hino. Deixou a igreja antes que Daniel pudesse apresentar qualquer reação.
O chamado de sua tia para partirem tirou-o da inanição. As palavras do ser que nem ao menos se apresentou martelavam sua cabeça enquanto caminhavam de volta para casa. Tia Maria, todavia, nem notou as feições de preocupação do sobrinho e pediu que entrassem em uma loja de departamento no quarteirão seguinte. O sobrinho concordou com a cabeça, muito provavelmente sem saber com o que assentia. Enquanto a senhora olhava cobertores e edredons, o rapaz foi à seção de eletrônicos.
No momento em que saiam sem terem comprado nada, o alarme antifurto disparou. Na mesma hora, Daniel sentiu uma mão pesada tocar em seu ombro e uma voz intimidadora falar-lhe: "Rapaz, o dono desta loja gostaria de conhecê-lo. Você pode me acompanhar, por gentileza?". Sem muita alternativa, quase que carregado pelo segurança, ele foi levado da frente para os fundos da loja, onde os escritórios ficavam. Sua tia protestava impotente enquanto via o sobrinho ser levado. A memória do sequestro ainda estava muito fresca na mente dela...
A sala em que Daniel aguardava era decorada de maneira sóbria: poucos quadros na parede azul escuro, luz indireta e uma mesa grande de madeira, que lembrava a de salas de grandes executivos. De uma porta lateral, diferente daquela pela qual ele fora empurrado para dentro, sai um homem que aparentava seus 40 e poucos anos. O terno cinza escuro muito bem alinhado, o cabelo penteado para trás com gel e a retidão do caminhar não combinavam com o fato de ser dono de uma loja de bairro.
O homem misterioso sentou em sua cadeira, inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos sobre a mesa, o queixo sobre os punhos cerrados e sorriu. Um calafrio percorreu a espinha de Daniel; ele se esforçava para não tremer nem sucumbir às lembranças do sequestro. Aos poucos, um cheiro de carne queimada foi tomando conta do lugar, sem fonte aparente. O dono da loja não se mexia, exceto pelos olhos que fitavam alternadamente a face e o tronco de rapaz.
Subitamente, uma fumaça negra começou a brotar das costas do homem de terno, formando uma sombra do que pareciam asas, mas com um aspecto incerto e macabro, quase como as asas de um dragão medieval. "Não se assuste, Ungido! Vamos conversar...".
Daniel paralisou. Seus olhos arregalados fixavam posição nos olhos da criatura a sua frente, que parecia ter chamas brilhando na pupila que se dilatava aos poucos. Instintivamente, começou a orar, pouco prestando atenção nas palavras que resmungava, mas buscando dentro de si toda fé que havia resgatado e retomado.
"A guerra é contada pelos vencedores, meu caro!", disse aquele ser perturbador. "Mas você já ouviu a nossa versão? Já parou para pensar por que os anjos pedem desesperadamente que nenhum humano nos dê ouvido? Será que não é porque nós temos uma parte da verdade que não lhes convém?"
"Pode me chamar de Samael." O demônio estendeu a mão como quem pede para ser cumprimentado. Daniel hesitou e não se mexeu (provavelmente não conseguiria nem se quisesse), o que, aparentemente, não foi tomado como insulto. "Ok, respeito seu temor. Não vou segurá-lo aqui por mais tempo porque agora você está em evidência e eu não quero esses holofotes para mim. Serei breve em meu relato:"
"Como um cristão praticante, você conhece a versão angelical da queda do grande Lúcifer. Saiba, contudo, que o que ele realmente queria não era o lugar do Jeová, mas que o conhecimento que ele detém fosse disseminado. Que a ditadura do orbe superior acabasse! A guerra que se seguiu à tentativa do Primeiro Caído de encontrar a fonte da sabedoria suprema foi provocada unicamente pela incitação da massa de anjos bitolados e sem personalidade pelo dito Todo-Poderoso!" Daniel, sem perceber, parou de rezar. Começou a prestar mais atenção ao que Samael dizia.
"Agora é evidente para mim que perderíamos, mas nossa ideologia nos levou a entrar na batalha direta e frontal com dois terços dos habitantes celestes! Fomos exilados após a derrota e refundamos o céu em um orbe inferior. Tudo o que queremos é o conhecimento supremo que aquele ditador prepotente guarda só para si... Você, na posição de Ungido, ou Esclarecido, como nós preferimos, é uma peça chave para balancear essa busca." Um instante de silêncio se fez. Os dois se olhavam compenetradamente. Nenhum músculo era movido por eles.
"Pode ir agora, rapaz! Pense no que te falei e volte sempre que quiser, dizendo que precisa falar com o senhor Geheimgang." As asas negras saíram de cena, o cheiro da sala voltou a ser de madeira e tinta. Samael, ou Sr. Geheimgang, levantou-se e saiu pela porta que entrou. A tranca da porta pela qual Daniel foi jogado ali dentro se fez ouvir abrindo.
Há 5 anos
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