A sala de reunião do castelo estava movimentada. Eram 15 pessoas sentadas à mesa comprida de carvalho, mais as tantas que entravam e saíam de lá com pilhas de papéis para que providências fossem tomadas. A rainha Solsana sentava-se à ponta da mesa ao lado da princesa Olara. À esquerda e à direita das duas estavam os assessores e os cerimonialistas que ajudavam na preparação do aniversário de 14 anos do infante Hinfiki, único filho da princesa com o duque de Rafos, já falecido.
Conforme combinado previamente entre elas, Solsana cuidaria da cerimônia externa, para os súditos que viriam aos jardins do castelo prestigiar a festa, e Olara ficaria com a cerimônia interna, apenas para a alta nobreza do reino de Nianguá, e com a iniciação do pequeno Hinfiki. A rainha havia decidido que a festa começaria com a banda real se apresentando no palco Sul, para em seguida a companhia de dança imperial fazer no palco Norte a encenação da mais clássica das peças do reino: "A Conquista do Leste". Isso tudo deveria durar pouco mais de uma hora e meia. Os presentes assistiriam tudo em pé mesmo, para evitar a confusão e a sujeira que ficou quando cadeiras e bancos foram disponibilizados na Festa da Colheita de dois anos atrás. Entre eles passariam vendedores de pães recheados e suco de waná patrocinados pela corte, com o preço simbólico de 2 tikis.
Findas as apresentações, Solsana apareceria no reduzido palco Leste ao lado da filha, do neto, do primeiro-ministro Iurguel e da baronesa de Sáchia, sua esposa. Um breve discurso seria proclamado pela rainha, seguida por um de Olana e concluído pelo do político. A música voltaria ao palco Sul, desta vez com a voz doce da marquesa de Córis em um show acústico. Por fim, concluindo a cerimônia, a iniciação de Hinfiki no palco Norte. Para que a multidão disperse, os vendedores parariam suas atividades após este último ato e apenas parte da banda real estaria fazendo algum som em solo até que o último presente deixe os portões do castelo. Esse era o esquema geral que era discutido com os ajudantes, buscando sugestões de melhorias logísticas, selecionando fornecedores e tomando decisões.
Olara, por sua vez, era menos decidida que sua mãe. Sua preocupação com as reações de seu filho em sua iniciação, feita para um público gigante, ocupavam parte de sua mente e a impediam de ser mais assertiva quanto aos detalhes. De qualquer forma, o esqueleto do momento estava montado. O jovem (ela diria a criança, mas fora censurada por sua mãe em reservado) entrará no palco e fará apresentações marciais com o bastão, a espada e o arco e flecha. Em seguida, encenará a batalha principal d'A Conquista do Leste ao lado do corpo de atores do reino e por fim o ápice, em que se aplica o Flagelo Puira para mostrar a todos que o rapazinho era de fato um Nemuri.
E aí é que morava a preocupação da princesa. Ela se lembrava de quando passou pelo Flagelo Puira. Os espectadores com os rostos hipnotizados, sabendo que nada aconteceria, mas esperançosos de ver a queda de um membro da família real. Fisicamente, o Flagelo não dói em um Nemuri. Incomoda um pouco, mas não dói. Mas psicologicamente, o efeito sob uma criança (sim, uma criança!) de 14 anos ver todos seus súditos torcendo para que algo dê errado, para que uma festa vire um banho de sangue, para que uma prova de superioridade se transforme em uma falha magistral, é devastador. Ela não gostaria que seu filho passasse por isso, mas sabia da importância da tradição.
Sendo assim, Olara focava esforços na cerimônia interna, essa sim em que Hinfiki seria admirado e quase adorado pelos nobres presentes. Após a iniciação, ele deverá trocar de roupa e vestir o traje de gala para se apresentar no salão de festas do castelo. Lá as 46 famílias de Nianguá com títulos nobiliárquicos elevados estarão sentadas em suas mesas ao redor do corredor em que o moço passará com passos cadenciados sob olhos maravilhados. Subirá os três degraus do pequeno palco do local e fará um curto discurso. Progressivamente, todos os presentes farão uma fila para cumprimentar pessoalmente o futuro rei e nobre guerreiro.
Da mesma forma que sua mãe, a princesa dava ordens e ouvia os conselheiros presentes, selecionando roupas, decoração, instrumentistas e demais pormenores que a situação exigia. Caia a tarde quando Olara chamou o seu filho para a sala. Entrou um rapazinho de pele escura, pouco mais de 1,55 m, cabelos trançados junto à cabeça e roupas soltas com temas geométricos coloridos. Seus olhos pretos ainda carregavam a candura da infância, o que reforçava o instinto de proteção da mãe com relação ao garoto.
- Filho, vá à Sala das Tradições e me aguarde lá. Chego em 10 minutos com sua avó. Hoje teremos uma conversa muito importante, que mudará sua forma de ver a vida e te preparará para a cerimônia daqui três semanas.
- Sim, mãe. Pode deixar!
Ele se despediu com um beijo carinhoso no rosto dela e saiu correndo, com todo o vigor da idade exalando pelos poros. Faltavam menos de 20 dias para que seu ingênuo menino virasse um homem, na mesma idade em que ela deixou de ser uma moça e se tornou mulher. Olara tomou a mão de Solsana, que a fez virar o rosto de forma quase automática, e disse:
- Vamos comigo, mãe! Preciso da sua presença para ter coragem de acabar com o que resta de inocência em Hinfiki.
A rainha notou o pesar no rosto da filha e se compadeceu. Ela se lembrava perfeitamente como fora quando ela e o rei contaram a história dos Nemuri para a princesa; as sensações ruins de trazer de solavanco uma pessoa à vida adulta, a culpa e a responsabilidade por isso. Com uma frase simples, ela encerrou os trabalhos daquele dia, ajeitou os cabelos crespos e grisalhos no coque no alto da cabeça e se levantou, seguida por Olara, ambas saindo em direção à Sala de Tradições.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Preparando a festa (Projeto Nemuri - parte 2)
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019
Formatura (Projeto Nemuri - parte 1)
As longas fileiras de cadetes estavam agrupadas em blocos quadrados geometricamente posicionados na praça Central para a formatura da turma. Tíssio era um dos perfilados, no segundo bloco, terceira linha, sétimo homem contado da esquerda para a direita. Sua ansiedade era grande para ver pela primeira vez o Protetor, general máximo e comandante de toda Lustor. As mãos suavam nervosas mais do que as costas que padeciam sob duas camadas de tecido da farda embaixo do calor forte. O coração batia acelerado, a respiração quase ofegante, os olhos atentos no púlpito montado no palco perto do Monumento do Soldado.
O som ambiente era formado pela junção das conversas dos espectadores, no contorno da formação militar, com o piar de alguns pássaros que atravessavam o campo aberto entre a Praça do Trabalhador e o Bosque da União e o rugido grave e baixo dos motores dos equipamentos militares ao fundo: tanques, carros de transporte e lança-foguetes. O céu estava limpo, com pouquíssimas nuvens bastante altas, sem bloqueio para o sol que ardia impiedoso.
De repente, do canto do palco começaram a surgir enfileirados os generais de exército e os ministros de Estado, todos com farda de gala. O murmúrio da multidão aumentou de volume conforme os comandantes se dispunham ombro a ombro e se encerrou quando o ministro do Exército ocupou o púlpito, ajeitou o microfone e introduziu:
- Atenção a todos os presentes! O vosso silêncio, por favor. Em primeiro lugar, quero agradecer a presença de todos que vieram prestigiar a formatura da 35ª turma de cadetes do Corpo de Batalha de Lustor. Tenho certeza que a minha frente estão os melhores soldados recém-formados que nossa nação pode ter, os mais bravos homens que habitam nossas terras em tenra idade, para servir a todos com alegria e dever. E é em honra a esses nobres cavalheiros que chamo aqui ao palco nosso Salvador, nosso Líder, nosso Comandantíssimo, o Protetor Hícarr!
A multidão explodiu em palmas, vivas e assobios! Os cadetes, contudo, não moveram um fio de cabelo. Mantiveram a posição de sentido que guardavam há quase vinte minutos. Sem que ninguém percebesse, Tíssio ajeitou as pernas, que tremiam, e engoliu a euforia junto com o pouco de saliva que havia em sua boca.
Híccar era um homem alto, de pele morena, cabelos escuros bem aparados e que exalava imponência. Sua sobrancelha desenhava um ar sério em um rosto quadrado e de queixo destacado. O nariz ocupava seu lugar sem se destacar e a boca era um risco na face, quase sem lábios. Não era possível notar como era a barba, uma vez que ele nunca havia sido visto usando uma. Do que era Tíssio conseguia ver do Protetor, os ombros eram largos e o corte da farda evidenciava como ele era musculoso, mas sem exageros. A mão de juntas grossas tocou o microfone, subindo-o um pouco para alcançar melhor sua voz e a multidão, como se ordenada por um maestro invisível, se calou. E então o discurso começou:
- Senhores generais e ministros, meu mais salutar cumprimento. Senhores cadetes, hoje sendo feitos soldados, meus efusivos cumprimentos. A todos os demais cidadãos que testemunham esse momento, senhores e senhoras, jovens e crianças, pais de família, trabalhadores e integrantes das Forças Armadas, meus calorosos cumprimentos. É com muita honra que mais uma vez estou aqui para discursar perante tão distinta plateia, ciente da obrigação que me é colocada nos ombros de saudar e receber esses jovens em nosso corpo de batalha. Jovens que decidiram deixaram suas casas, o conforto do lar com pai e mãe para entrar para uma corporação em que medo e fragilidade não são admitidos. Rapazes que ouviram o chamado do dever e se alistaram por pura iniciativa e força de vontade para ajudar na proteção e expansão de Lustor.
"Quero que os civis fechem os olhos agora e se lembrem de antes da Era da Proteção. De quando Lustor vivia mergulhada no caos e na burocracia de tecnocratas que só sabiam dar ordens de trás de uma mesa. De quando o medo de um ataque vizinho era uma constante. Quando o exército, ou aquilo que se chamava de exército, era pura desordem e anarquia. Generais gordos de óculos escuros desfilavam em carros oficiais mamando privilégios às custas do trabalho digno do cidadão. Agora abram os olhos lentamente. Observem no palco os líderes que temos: respeitados, versados nas artes da guerra e em forma. Obedecidos sem questionamento por seus subordinados porque sabem que eles são os melhores entre os melhores. Vejam os rostos decididos desses nossos soldados, prontos para dar a vida por Lustor, pela sua família e pela nossa população. Agora me vejam. Saímos da barbárie para a mais absoluta ordem graças a mim."
"Não falo isso por ego. Não preciso da adoração de vocês! Preciso da confiança de vocês! Preciso que confiem que continuarei minha tarefa eterna de ser o Protetor de vocês, aquele que não deixa faltar nada a ninguém, que garante a paz e a harmonia de Lustor. Eu trouxe a retidão e a mantenho como única meta em minha vida. E como sei que tenho essa confiança inabalável, quero agradecer a cada um por isso. Por fazer sua parte para o todo, para que possamos continuar caminhando rumo à perfeição. Quero ser grato por cada sorriso que vejo quando me cruzam os olhos, por cada aceno que recebo quando passo. Quero ser grato por confiarem seus filhos a mim, para que eu os faça homens, cidadãos e futuros líderes. Quero, por fim, desejar muito sucesso a todos esses rapazes perfeitamente alinhados à minha frente. Espero que aí embaixo estejam os homens que amanhã estarão aqui comigo celebrando mais uma formatura, desta vez como oficiais."
"Sejam bem-vindos à vida adulta, senhores! Tenentes, distribuam as medalhas! Artilharia, uma salva de sete tiros! Forças Armadas, posição... Sentido!"
Prontamente os do palco se compuseram e fizeram continência voltados para Hícarr. O mesmo fizeram todos os oficiais que estavam também perfilados e os soldados. Tíssio enrijeceu-se mais ainda, estufou o peito e elevou a mão espalmada para baixo na altura do supercílio. Com o primeiro estouro do tiro de comemoração, os civis presentes foram ao delírio, exaltação que durou até após o sétimo tiro e só diminuiu quando o Protetor deixou o palco, seguido de seus comandados diretos.
Os tenentes começaram a distribuir as medalhas aos soldados e só liberou a todos quando o processo foi concluído. Estes saíram ordeiramente em fila até os braços da multidão, que os recebiam em festa, com beijos de mães que não viam seus filhos há meses e abraços de pais satisfeitos por terem criados homens de verdade. Os irmãos, quando conseguiam um espaço, se agarravam às pernas ou ao tronco do militar com afeto. Nosso nobre rapaz demorou quase 40 minutos para achar sua família na meio do povo.
O contingente de Lustor oficialmente acabava de aumentar.