Eu havia caminhado pela neblina por algumas semanas, somente com os suprimentos que carregava nas costas. Meu querido cavalo Kalorus não suportara dois dias de viagem depois da batalha de Oboupur, e tive que sacrificá-lo perto da Ponte Ágata.
Andar sem enxergar mais de 10 metros a frente já é um desafio absurdo. Quando se está em território desconhecido, dentro de região pantanosa e racionando comida, a tarefa passa a ser uma epopeia! E essa foi minha situação por um bom tempo...
Devo admitir que, em qualquer situação, há coisas boas para se tirar proveito. O isolamento, o silêncio e a privação me fizeram olhar para dentro, refletir comigo mesmo sobre o porquê de ser um guerreiro e um conquistador. Fui colocado frente a frente com cada alma que arranquei do corpo com o fio da espada e a explosão dos meus músculos. Pude, pela primeira vez na vida após um embate, ponderar a razão de viver e deixar de pensar em voltar para casa apenas para me esbaldar com as mulheres do castelo. A conclusão não veio de sopetão, mas a cada minuto se tornava mais evidente: eu precisava de alguém para quem regressar.
Uma mulher que ficasse aflita ao me ver partir, que me odiasse por eu ter escolhido a guerra como fonte de riqueza, que sorrisse largamente ao me ver voltar de uma campanha e cuidasse de meus ferimentos até que a próxima incursão se anunciasse. Ela carregaria meus filhos no ventre com orgulho e iria ensiná-los o amor e a retidão, enquanto eu os lecionaria a arte do combate e os princípios que regem a honra de um guerreiro. As filhas que fossem fruto de nossa paixão seriam as mais belas e gentis do reino, carinhosas como a mãe e dedicadas como o pai.
Apesar da fome, do cansaço, do sono e de tudo o mais que a exaustão traz a reboque, essa motivação empurrava minhas pernas uma após a outra. Perto da fronteira do charco com a planície, uma luz trêmula e amarela brilhou no horizonte, rompendo o véu esbranquiçado da neblina. Senti que era meu sinal e caminhei determinado naquela direção.
Uma fogueira! Eu havia encontrado vida após tantos dias andando só e a esmo! Sendo mais sortudo do que cauteloso, me aproximei daquela clareira sem maiores preocupações e não encontrei resistência. Havia comida fresca, água e algumas frutas silvestres junto às chamas, mas nenhum ser vivo. Contudo, antes que eu pudesse mover um músculo em direção aos suprimentos, senti uma adaga tocar meu pescoço. Sem entrar em pânico por um segundo sequer, notei que, quem quer que fosse o agressor, tinha um cheiro suave de flores do campo.
Uma voz firme, mas doce como o toque da harpa, ordenou: "Ajoelhe-se sem movimentos bruscos ou lhe tiro a vida!". Obedeci o pedido, mas, sendo versado na arte da luta, não me contive e tentei surpreendê-la puxando sua perna e provocando sua queda. Com os reflexos de um felino, ela pulou, evitou o tombo, ajoelhou-se sobre meu abdômen e enterrou a pequena faca em meu ombro.
A dor já era minha companheira havia dias, e aquela agressão já não fazia mais diferença. Agarrando firmemente um de seus braços, girei-a em direção à luz da fogueira e me deparei com uma imagem que escultor nenhum conseguiria reproduzir com perfeição. Uma mulher de cabelos longos e ondulados olhava para mim com ódio. Sua pele lisa enchia-se de rugas com aquela feição, mas sua beleza não conseguia se ocultar. Olhos tão escuros como a própria noite refletiam a chama vacilante atrás de nós e miravam o fundo dos meus olhos, provavelmente buscando minha alma.
Afastei-a de mim como pude, receoso de que ela conseguisse encontrar uma brecha em meu cansaço e piorasse o ferimento. Sua postura era de estado selvagem puro: os dentes à mostra, os pés calçados em sapatilhas rudimentares firmemente apoiados no chão e prontos tanto para avançar quanto para recuar, os braços próximos ao corpo sustentando o equilibrio do conjunto. Antes que qualquer movimento seguinte se fizesse, rolei mais uma vez para trás e pus-me de pé enquanto tentava acalma-la:
- Não temas, mulher. Não quero causar-lhe mal algum. - Calmamente desatei o cinto em que carregava a espada e o deixei cair no chão. - Caminho há mais tempo do que gostaria por esse local desconhecido e somente quero um lugar seguro para descansar e algo que preencha meu estômago além dos pequenos animais que encontrei pelo caminho. Aceite minha pequena reserva de água restante como prova da veracidade do que digo.
Sem pressa, tirei a bolsa de couro que carregava cruzada sobre o ombro e a joguei os pés daquela ninfa acuada, que diminuia a tensão dos músculos e trocava a expressão de agressão por uma de desconfiança. Também chutei a espada para mais longe de mim, tentando mostrar cooperação. Obviamente, a faca que trazia na parte de dentro da bota permaneceu lá por precaução.
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
Vitória (parte 1)
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Guerra e Sangue (parte 2)
Primeira parte: Guerra e Sangue (parte 1)
Ranik, mantendo o grito ainda por alguns segundos, retirou seu machado das costas e apontou para o exército inimigo. Simultaneamente, começou a correr em direção a eles, seguido de perto por seus liderados.
Do lado dos molitas, em vista da movimentação dos invasores, a dança ritual parou e gritos de ordem puderam ser ouvidos, sem que se fosse capaz de detectar a origem do som, contudo. Do chão, eles puxaram seus escudos quadrados de madeira escura e formaram uma parede. O choque da força contra a resistência seria o primeiro ato do teatro marcial.
O General se aproximava velozmente com seu exército, mas diminuiu o ritmo para permitir que o encontro violento entre corpos, espadas e a muralha negra de escudos se desse entre os mais empolgados: geralmente os mesmos que se perdiam na adrenalina e morriam no início da batalha.
Ranik, então, ordenou ao segundo destacamento que flanqueasse pela direita assim que a guarda inimiga fosse desafiada pela primeira batida, forçando ao extremo a tática e a organização molita.
As primeiras vidas eram ceifadas quando o líder dos ueltas teve a visão que queria: na terceira fileira atrás dos escudos, gesticulando sutilmente e falando alto, todavia sem chamar atenção, um molita de cabeça raspada e pele avermelhada ditava os movimentos do exército nativo.
Vendo que estava sendo flanqueado, o homem careca falou uma ou duas palavras incompreensíveis e o bloco molita de pouco menos de dez mil elementos dividiu-se em dois. Surpreendentemente, o segundo bloco deixou o primeiro e partiu para a ofensiva. Estava instalada a guerra total.
Esse é, sem dúvidas, o pior cenário possível para os comandantes. Levados pela fúria, pela emoção e até pelo instinto de sobrevivência, os combatentes param de obedecer cegamente (fundamental para que qualquer estratégia funcione) e começam a tentar matar o maior número possível de adversários, indiscriminadamente. Assim, perde-se a organização, perdem-se combatentes e, o puor dos efeitos, perde-se muito Sangue, que escorre dos corpos mutilados e serve aoenas para tingir o campo de batalhas.
Ciente desse risco e fazendo uso de sua experiência e sabedoria vindos principalmente do Sangue acumulado, Ranik ordenou o reagrupamento em células. Os soldados ueltas, nessa formação, devem formar grupos compactos de até quinhentos homens e manter a defensiva. O General, assim, pretende reduzir as baixas de seu lado e diminuir a violência dos assassinatos, deixando mais Sangue disponível ao final da luta.
O líder molita, que Ranik percebeu que era chamado de Vina pelos companheiros, mostrou-se surpreso. Também vociferou algumas ordens, que eram replicadas para o próximo por cada combatente de seu exército, e resolveu atirar-se um movimento extremamente inusitado e arriscado.
Tendo sido identificado por Vina como líder uelta e potência de Sangue, Ranik virou alvo de todos os molitas! Às dúzias, eles se atiravam contra o General para matá-lo e eram dizimados, um a um. O trunfo molita de igualdade mostrou seu lado perverso: não havia um homem capaz de, sozinho, tirar a vida desse guerreiro.
Quase quatro horas de combate haviam transcorrido e o resultado começava a ficar ruim para os donos das terras, com muitas baixas e a frustração ameaçando tomar seus corações. Vina, atento a isso, agachou-se, tomou um punhado do solo pedregoso nas mãos, esfregou, assoprou e jogou para o alto.
Antes que os pedriscos voltassem a tocar o chão, um estrondo de trovão sobrepôs-se às vozes que gritavam naquele vale. Repentinamente, uma chuva caldalosa arremessou-se com fúria dos céus sobre os indivíduos.
Sem que Ranik pudesse entender o porquê, todos ali começaram a ficar manchados em sua pele, com tons que variavam do amarelo Sol ao vermelho da brasa. Com um sorriso de satisfação no rosto, pela primeira vez naquele dia o líder molita gritou. Foram duas sílabas esbravejadas, repetidas por seus companheiros. Foi o marco da reviravolta.
O General observou atentamente o movimento adversário. Todos eles, que ficaram com a pele alaranjada após o início do temporal, atacavam impiedosamnete os ueltas que tinham o amarelo estampado em si, mesmo se em formação ou defendidos.
Olhando para o próprio braço, o líder uelta viu que o vermelho intenso era a cor que o cobria e compreendeu a magia dos nativos. Incapaz, pela primeira vez em sua longa vida, Ranik ordenou a retirada. Seus soldados mais rasos estavam sendo massacrados e o exército rapidamente perdia volume. Por terem o Sangue fraco, os jovens guerreiros não eram poupados do esquartejamento promovido pelos molitas.
Apesar de tudo, o General não estava de todo despreparado. A tática para recuar e se retirar fora treinada e, pela primeira vez desde que assumiu o exército, foi posta em prática. Cada uelta deveria carregar um corpo que tivesse perdido menos Sangue possível e recuar até o ponto acordado.
Ranik não se deu esse trabalho. Caminhou de costas, com o olhar fixo em Vina, que retribuiu com alívio no semblante. Os ueltas voltariam furiosos e mais preparados, isso era fato, mas com muito mais respeito também. O General fervia de raiva e viria para a revanche. Entretanto, não em um futuro próximo. A paz provisória dos molitas estava conquistada.
terça-feira, 14 de agosto de 2012
Extrema-Unção (parte 2)
Primeira parte: Extrema-Unção (parte 1)
Uma semana separava a saída de Daniel do hospital de sua saída de casa naquele dia. Neste período, o rapaz não tinha tomado conhecimento de nenhum outro anjo pelos lugares em que esteve, levando-o a pensar que tudo aquilo podia ser efeito colateral de algum remédio que lhe fora administrado. Contudo, a fé que habitava seu coração - que havia voltado a habitar, na verdade - era a única prova de que precisava.
Convidado por sua tia Maria, o jovem decidiu ir à missa na igreja em que fora batizado, primeiro passo religioso que daria para sua retomada no caminho do Senhor. Ao fim da celebração, ele ainda permaneceu algum tempo recebendo palavras de incentivo de alguns fiéis, que acompanharam a agonia da família pelas fofocas de bairro, e respondendo perguntas de curiosos. Após a sabatina, ajoelhou-se e orou mais um pouco em agradecimento e ação de graças. Quando ergueu a cabeça, notou que na igreja só restavam ele, sua tia e o padre, estes dois conversando animadamente. Contudo, ouviu um hino ser assobiado ao fundo e, quando virou de costas, viu que um faxineiro varria o piso do templo.
Com uma explosão silenciosa, um clarão emanou das costas do rapaz que passava a vassoura. Rafael não era o único; aquilo não foi alucinação! O servente, então, ergueu a cabeça, sorriu para Daniel, cessou o assobio e caminhou em direção ao rapaz. Sentou-se ao seu lado - Daniel maravilhado com a visão - e falou baixo, mas totalmente audível: "O inimigo já sabe da sua existência. Seja firme na fé e não sucumba à tentação." O anjo sorriu mais uma vez, olhando no fundo dos olhos do ungido, e partiu, voltando a assobiar o hino. Deixou a igreja antes que Daniel pudesse apresentar qualquer reação.
O chamado de sua tia para partirem tirou-o da inanição. As palavras do ser que nem ao menos se apresentou martelavam sua cabeça enquanto caminhavam de volta para casa. Tia Maria, todavia, nem notou as feições de preocupação do sobrinho e pediu que entrassem em uma loja de departamento no quarteirão seguinte. O sobrinho concordou com a cabeça, muito provavelmente sem saber com o que assentia. Enquanto a senhora olhava cobertores e edredons, o rapaz foi à seção de eletrônicos.
No momento em que saiam sem terem comprado nada, o alarme antifurto disparou. Na mesma hora, Daniel sentiu uma mão pesada tocar em seu ombro e uma voz intimidadora falar-lhe: "Rapaz, o dono desta loja gostaria de conhecê-lo. Você pode me acompanhar, por gentileza?". Sem muita alternativa, quase que carregado pelo segurança, ele foi levado da frente para os fundos da loja, onde os escritórios ficavam. Sua tia protestava impotente enquanto via o sobrinho ser levado. A memória do sequestro ainda estava muito fresca na mente dela...
A sala em que Daniel aguardava era decorada de maneira sóbria: poucos quadros na parede azul escuro, luz indireta e uma mesa grande de madeira, que lembrava a de salas de grandes executivos. De uma porta lateral, diferente daquela pela qual ele fora empurrado para dentro, sai um homem que aparentava seus 40 e poucos anos. O terno cinza escuro muito bem alinhado, o cabelo penteado para trás com gel e a retidão do caminhar não combinavam com o fato de ser dono de uma loja de bairro.
O homem misterioso sentou em sua cadeira, inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos sobre a mesa, o queixo sobre os punhos cerrados e sorriu. Um calafrio percorreu a espinha de Daniel; ele se esforçava para não tremer nem sucumbir às lembranças do sequestro. Aos poucos, um cheiro de carne queimada foi tomando conta do lugar, sem fonte aparente. O dono da loja não se mexia, exceto pelos olhos que fitavam alternadamente a face e o tronco de rapaz.
Subitamente, uma fumaça negra começou a brotar das costas do homem de terno, formando uma sombra do que pareciam asas, mas com um aspecto incerto e macabro, quase como as asas de um dragão medieval. "Não se assuste, Ungido! Vamos conversar...".
Daniel paralisou. Seus olhos arregalados fixavam posição nos olhos da criatura a sua frente, que parecia ter chamas brilhando na pupila que se dilatava aos poucos. Instintivamente, começou a orar, pouco prestando atenção nas palavras que resmungava, mas buscando dentro de si toda fé que havia resgatado e retomado.
"A guerra é contada pelos vencedores, meu caro!", disse aquele ser perturbador. "Mas você já ouviu a nossa versão? Já parou para pensar por que os anjos pedem desesperadamente que nenhum humano nos dê ouvido? Será que não é porque nós temos uma parte da verdade que não lhes convém?"
"Pode me chamar de Samael." O demônio estendeu a mão como quem pede para ser cumprimentado. Daniel hesitou e não se mexeu (provavelmente não conseguiria nem se quisesse), o que, aparentemente, não foi tomado como insulto. "Ok, respeito seu temor. Não vou segurá-lo aqui por mais tempo porque agora você está em evidência e eu não quero esses holofotes para mim. Serei breve em meu relato:"
"Como um cristão praticante, você conhece a versão angelical da queda do grande Lúcifer. Saiba, contudo, que o que ele realmente queria não era o lugar do Jeová, mas que o conhecimento que ele detém fosse disseminado. Que a ditadura do orbe superior acabasse! A guerra que se seguiu à tentativa do Primeiro Caído de encontrar a fonte da sabedoria suprema foi provocada unicamente pela incitação da massa de anjos bitolados e sem personalidade pelo dito Todo-Poderoso!" Daniel, sem perceber, parou de rezar. Começou a prestar mais atenção ao que Samael dizia.
"Agora é evidente para mim que perderíamos, mas nossa ideologia nos levou a entrar na batalha direta e frontal com dois terços dos habitantes celestes! Fomos exilados após a derrota e refundamos o céu em um orbe inferior. Tudo o que queremos é o conhecimento supremo que aquele ditador prepotente guarda só para si... Você, na posição de Ungido, ou Esclarecido, como nós preferimos, é uma peça chave para balancear essa busca." Um instante de silêncio se fez. Os dois se olhavam compenetradamente. Nenhum músculo era movido por eles.
"Pode ir agora, rapaz! Pense no que te falei e volte sempre que quiser, dizendo que precisa falar com o senhor Geheimgang." As asas negras saíram de cena, o cheiro da sala voltou a ser de madeira e tinta. Samael, ou Sr. Geheimgang, levantou-se e saiu pela porta que entrou. A tranca da porta pela qual Daniel foi jogado ali dentro se fez ouvir abrindo.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Extrema-Unção (parte 1)
O ambiente era escuro, com um ar úmido e pesado que fazia do ato de respirar um desafio. Um rapaz ajoelhado, mãos atadas às costas, tinha uma arma apontada para sua cabeça. A curta distância provavelmente faria a bala abrir apenas um pequeno buraco ao entrar em sua nuca, mas a saída causaria um estrago gigante em seu rosto. As perspectivas não eram boas para Daniel, rendido daquela forma.
É nesse instante que, conforme a cultura popular prega e ele foi capaz de provar, a vida passa diante dos olhos. Daniel se lembrou de sua infância na casa dos avós, os passeios com seus irmãos, o pouco tempo que passara com os pais (que mais trabalhavam do que eram presentes), as três namoradas que teve na vida, o carro que recebeu ao passar no vestibular, a batalha para se formar na faculdade enquanto o câncer de seu avô avançava; finalmente lembrou-se de uma frase que sua avó repetia à exaustão e aparentemente sem motivo: Meu Senhor e meu Deus, eu creio, mas aumentai a minha fé!
Nesta fração de segundo, a recordação pairou sobre sua infância religiosa, a desilusão com as instituições e seu afastamento da espiritualidade, para tristeza de Dona Cristina, mãe de seu pai. E aí, somente aí, ele entendeu o porquê da ladainha silenciosa e diária daquela senhora dos cabelos tão brancos que praticamente o criou. E decidiu repetir, também cochichando e também com fé, aquela força mística que aparece em momentos de desespero: "Meu Senhor e meu Deus, agora eu creio. Aumenta a minha fé!”.
"Para de choramingar, moleque! Eu avisei ao teu pai para não envolver a polícia nisso aqui! Era só pagar quietinho que a gente te entregava, porra!" Após o palavrão, um tiro se fez ouvir. O barulho do corpo ao atingir chão se confundia no meio da confusão de sirenes, gritos, passos de corrida e vozes em radiocomunicadores.
Abrindo os olhos, que haviam sido fechados com força quando o estampido preencheu o ambiente, Daniel viu o corpo de um dos seus sequestradores caído ao seu lado. O buraco à bala acima do olho atestava sua morte certa. Em instantes, diversos policiais romperam os cadeados e trincos das entradas e invadiram o ambiente. Antes de desmaiar, porém, o jovem viu uma sombra humanoide no fundo do galpão fugir do local. Ele poderia jurar que viu asas naquela imagem.
Daniel acordou no hospital cercado por familiares, inclusive seus pais. Ficaria ali em observação por 48 horas para alguns exames, incluindo uma conversa com a psicóloga, afinal passara quase uma semana em posse de seus raptores. Quando as pessoas foram embora e seu pai, que lhe faria companhia durante esse período, foi comprar algo para comer, um enfermeiro entrou no quarto. Homem negro e de porte atlético, mas com um ar bastante sereno e sorriso pacato. Com sua voz intensa, mas falando em tom calmo e baixo, ele desejou boa noite a Daniel.
"Meu nome é Rafael e sou seu enfermeiro deste turno. Se precisar, aperte este botão e virei atendê-lo." Depois de observar os aparelhos e fazer anotações em uma prancheta, Rafael virou-se e disse ao rapaz: "Feche os olhos, por favor. Diga-me: você realmente crê?".
O coração de Daniel disparou, um turbilhão de emoções invadiu seu corpo por um instante tão breve quanto um amém. "Como esse enfermeiro faria tal pergunta, dado tudo o que se passou hoje?!" Contudo, o que se seguiu foi paz. Uma paz imensa preencheu cada membro do seu corpo, cada pelo, cada poro. Lágrimas escorreram de seus olhos e ele conseguiu falar "Sim, eu creio!".
Quando abriu os olhos, todo o ambiente estava muito mais claro. Ao fitar Rafael, Daniel notou que o brilho emanava de sua cabeça, assim como de suas costas dois feixes de luz se projetavam como asas.
"Rapaz, por Ele foi dada a benção a você de nos identificar. Você poderá saber quem somos entre os homens e compreenderá nossa língua antiga. Você agora é um ungido. Viva uma vida de retidão, ande sob as leis de nosso Criador, ajude o próximo e teu lugar ao Seu lado estará seguro. Contudo, como os inimigos já foram o que vocês chamam de anjo, você também saberá identificá-los e eles saberão que você é abençoado. A tentação será grande, mas acredite que Deus é fiel!"
Após o minidiscurso, não que Daniel tenha sido capaz de processar muita coisa, o enfermeiro saiu do quarto e seu pai entrou. Algumas palavras foram trocadas, mas este não perguntou nada sobre os olhos molhados do jovem, imaginando que era natural sua recorrência dado os episódios de violência recente. Daniel preferiu dormir em seguida, para tentar de fato acordar. Desde que o Sol se pusera, nada havia feito sentido. E o astro-rei já estava prestes a retornar aos céus...