quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Oakhart

A guerra estava perdida. Apesar de ter previsto, Oakhart apenas se deu conta daquilo no exato instante em que os portões frontais foram derrubados, a última barreira que impedia que o flagelo vindo do sul com aço e fogo destruísse os séculos de história de nosso povo e nossa fortaleza.

O guerreiro já havia tomado as providências para que nenhuma preocupação, como família ou posses, atrapalhasse sua ação na última batalha. No Reino de Heerit, os mais altos céus, dedicado apenas aos mais nobres e destacados defensores do Norte, tudo seria recuperado com abundância. Pela manhã daquele mesmo dia, ciente da iminência da derrota, Oakhart beijou a testa de sua amada esposa e a bochecha rosada de sua filha de apenas dois anos. Suas preciosidades não seriam escravas do inimigo! Como exigia a tradição desse tipo de ritual, as duas deitaram-se lado a lado, como se fitassem o teto. O mais delicado tecido, usado em geral como enfeite de cabelos nas comemorações da colheita, foi posicionado sobre os olhos das duas. Em dois golpes firmes e certeiros, ele transpassou o coração de Mearill e da pequena Lilian. Não houve grito, não houve choro, não havia tempo para lamentos. Ele sentia que em breve se reencontrariam...

Com a ajuda do filho mais velho, de 15 anos recém-completos, ele degolou todas as ovelhas que criavam e envenenou a carne delas com folhas de amiúte e vinagre. Pôs fogo em toda aveia e cevada que estava plantada e no estoque que haviam começado a aprontar para o inverno. Em seu âmago, a certeza de que suas terras já não lhe pertenciam mais já tinha raízes fortes, como a árvore de crístilus à beira do rio. Nem por isso, contudo, ele as entregaria intactas ao invasor.

Seu filho conhecia um pouco da arte da luta. Há tempos já sabia montar, manejava um arco com certa destreza e portava uma espada comum com ambas as mãos, ligeiramente desconfortável com o peso da arma. Defendia-se relativamente bem com ela, mas seus ataques ainda eram falhos e desengonçados. Oakhart deu-lhe uma cota de malha, um elmo e uma faca longa e o tomou como seu armador. Tradicionalmente, sabemos que um homem não deve abraçar outro que já esteja em idade de ser varão, mas o guerreiro só via ali um menino de olhos assustados e pés trêmulos. De forma discreta e visivelmente sem jeito, ele se inclinou para frente e apertou a cabeça do filho contra o peito. Não trocaram palavras nem olhares. Depois do afago, trocaram sim nosso cumprimento tradicional, feito apenas por adultos, a única vez que o jovem Siezeth se sentiu de fato um homem pronto.

Após subirem as colinas da lateral da fortaleza em passos rápidos, Oakhart e seu filho armador totalmente equipados se dirigiram à linha de defesa dos muros internos do castelo. Da soleira, os dois viram a extensão do exército acampado à frente dos muros externos. Se o homem já tinha inventado um número para contar aquele contingente, seu nome ainda não havia sido descoberto. Em sua inexperiência, Seizeth perguntou ao pai se todas as pessoas do mundo estavam naquele descampado que chegavam até onde os olhos podiam tocar, mas não obteve resposta.

Quando o sol estava a pino, iniciou-se uma demonstração de engenhosidades, magia e fogo! Uma chuva de flechas, fumaça, trovões e pedras em fogo ardente recobriram o céu. A população, assustada e extenuada pelas quase cinco semanas de cerco, começou a correr desesperadamente para suas casas, apenas para morrer carbonizada quando os telhados de palha, piche e pinho ardiam como piras de oferta aos deuses. Enquanto fazia chover brasas, o inimigo forçava o portão principal com um grande cavalo de madeira, que, quando lhe puxavam o rabo feito de cordame, dava cabeçadas firmes contra as barras de ferro que unia as toras da porta.

Os primeiros batedores começavam a escalada do muro externo. Um destacamento foi indicado para detê-los e Oakhart fazia sua retaguarda. Entre flechas, espadas, gritos e sangue, o inimigo era afastado a cada investida por cima, mas brotava incessantemente, como formigas que saem de um formigueiro quando o cavalgar lhes ameaça a moradia. O guerreiro quase não ouviu o grito de "Pai!" que Seizeth emitiu do fundo dos pulmões quando um ofensor surpreendeu o jovem e o feriu na perna. Impossibilitado de salvar a vida do filho, e esperando para ele uma morte digna de um bravo lutador, só devolveu um "Lute!" feroz. Com a garganta cortada por um golpe profundo ele não emitiu mais som nenhum, e Oakhart bateu em retirada com o que restou do destacamento para lutar ao lado de nosso Rei sem conseguir recolher o corpo do rapaz. Tudo o que pôde fazer foi pedir a Faar que guiasse sua alma para Heerit.

O início da chuva em nada aplacou o inferno que se espalhava em chamas que lambiam as riquezas do nosso reino com desdém. Um trovão foi ouvido segundos antes do barulho do Grande Portal ser arrebentado, a fronteira entre o mundo externo e o interno. Nosso Rei agradeceu a todos os presentes pelos anos de serviço ao seu lado e bradou a ordem do último ataque de resistência. Inútil em se tratando de deter nossa capitulação, mas fiel aos mais nobres princípios do nosso povo de nunca desistir. Sobre seu cavalo, ele abriu caminho entre as primeiras fileiras de inimigos e decapitou quantos pôde. Todos os demais nobres o seguiram em suas montarias e os guerreiros de chão vieram após, Oakhart inclusive.

Naquela luta não se usaria técnica, maestria ou destreza. A força bruta imperava e o objetivo era incapacitar o maior número de ofensores, para que entre os espólios da guerra ficassem centenas de doentes e feridos. A vitória lhes custaria caro e o sabor doce da conquista demoraria a tocar as bocas inundadas de sangue, gemidos, pus e feridas.

Oakhart bradava e trabalhava o fio da espada agressivamente. Nem fez questão de contar os corpos, como é nosso costume, porque não haveria banquete de vitória para se gabar dos feitos. Avançava como uma broca perfura o tronco de uma árvore, cuja casca permanece aparentemente intacta, mas a seiva escorrendo denuncia a profundidade dos danos causados.

Enfim sentiu algo rasgar sua panturrilha. Seguiu em frente mancando, com a fúria de 20 homens em um só e abatendo ou ferindo gravemente mais um punhado de inimigos. Na costela, uma adaga foi depositada com força e torcida, o que o fez urrar e cair de joelhos. Abandonou a espada e tirou a faca longa da cintura. Naquela posição, só foi capaz de abrir mais dois abdomens, antes que uma série de espadas fosse ao encontro de seu ombro e flanco. No chão, tentou erguer o braço para ainda agarrar algum infeliz e arrastá-lo consigo para a morte. Um golfo de sangue possuiu sua garganta antes que tivesse essa oportunidade e, olhando para o céu nublado entre as botas que se dirigiam ao seu rosto, viu a carruagem de fumaça puxada por corvos de Faar. Sorriu. Sim, Heerit era sua próxima parada e meu filho viria ao meu encontro.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A criação (parte 2)

Primeira parte: A criação (parte 1)

Tudo o que havia se resumia ao Espaço e às três entidades. Não que fosse pouco, por que se trata de tudo o que temos ao nosso redor hoje e tudo o mais que nem sabemos ainda que existe. Contudo, Nalus não negou sua essência e decidiu criar. Com seu poder infinito, em seu primeiro esforço criou todos os tipos de energia possíveis, que de fato é uma só, mas assim como um cubo tem diversos lados e é um só, assim é a primeira obra de Nalus.

Cheio de energia, o Espaço regozijou e torceu para que, à semelhança de seu irmão, Trifan e Cuzio se manifestassem. O primeiro tentou destruir toda a energia que seu gêmeo criou, mas uma piscada do segundo fez com que o ato fosse transformado em separação. Assim, parte da energia virou matéria, parte se fez massa e o restante ficou como estava. A confusão generalizada do toque de duas entidades ao mesmo tempo causou uma enorme explosão, e até hoje é possível ver traços do acontecimento se você olhar fixamente para o céu por bastante tempo.

A ruptura causada foi enorme! O Espaço, que tudo via distraidamente, como quem observa filhos brincarem numa caixa de areia sem se atentar aos detalhes, assustou-se com a abrupta mudança de cenário. E em um movimento de todo involuntário, quase o Espaço volta a ser Tempo e tudo teria um fim sem nem ter começado. Como nós, seres humanos, estamos aqui para contar a história, obviamente não foi isso que aconteceu, e apesar de nada se saber sobre como o Espaço conteve-se e permaneceu, é sabido que o tempo iniciou-se aí. Só a partir deste acontecido é que pode se falar com propriedade em antes e depois, e toda vez que se usa essas palavras antes deste ponto é pura metáfora literária.

A explosão inicial, aquela que fez o tempo começar a contar dentro do Espaço, foi tão encantadora e maravilhosa, apesar de inesperada, que nenhum deles interferiu enquanto matéria, massa e energia se espalhavam por todo o Espaço. A falta de interação entre esses elementos, contudo, intrigava Nalus. Era como se cada um fosse transparente a tudo ao seu redor e ele percebeu que nada de concreto sairia dali. Infeliz com o rumo que sua criação estava tomando, Nalus interferiu novamente. Um movimento singelo e as interações foram criadas por ele, fazendo com que surgisse o que hoje chamamos de força. Assim como a energia, todos os tipo de força foram criados, apesar da força ser uma só, o que até hoje é um mistério dentro do conhecimento.

Trifan, reativo mais do que criativo, porém também infinitamente inteligente como seus irmãos, resolveu por seus dedos naquelas infindáveis interações que surgiram, desta vez agindo com cautela para evitar as interferências de mau gosto do aparentemente inconsequente Cuzio. Ao invés de acabar com as interações, aumentou-lhes a potência para que o encontro de duas partes de energia aniquilasse ambas e o encontro de duas partes de massa se agregasse ao ponto de nunca mais se separarem e atraírem cada vez mais massa. Inevitavelmente, pensou o ente da destruição, era só aguardar tempo o suficiente para que tudo fosse destruído.

Todos se surpreenderam. Trifan deu um golpe de mestre, sua essência se manifestou de forma alternativa ao tradicional e tirou todos do eixo. O Espaço se encolheu levemente por um período mais curto do que qualquer mísero instante, e só depois voltou a se expandir. Nalus nem se deu conta que criou um, e apenas um, ponto absoluto de energia, que até hoje vaga como singularidade por aí na imensidão. Já Cuzio foi além...

O mais novo entendeu o que acontecia e enxergou potencial. O espanto deu lugar ao brilhantismo, o choque abriu margem para a novidade. Cuzio mexeu nas regras! Sim, a energia, a matéria e a massa que Nalus criou ficariam lá, bem como as respectivas interações. Sim, as aniquilações de Trifan permaneceriam, bem como os aglomerados que a tudo sugam. Mas Cuzio decidiu que o infinito não mais seria a regra absoluta. Assim, ele transformou as existências e inventou o limite. E com o limite, estava estabelecido o equilíbrio, a base do sistema do nosso saber.

A perfeição do que estava a sua frente tocou o Espaço. Poucos dos nossos segundos haviam se passado desde o início do tempo, mas sua sabedoria eterna percebeu que aquilo era bom e deveria perseverar, mesmo à custa dele ter que interferir. Gigante demais para deter os dois irmãos antagônicos, mas ainda com todo o poder que lhe era intrínseco, mais poderoso do que as três entidades somadas, o Espaço respirou fundo e usou de seus atributos para acabar com o embate antes que tudo se transformasse em nada e em tudo e em nada eternamente. Sua voz foi ouvida pela segunda vez em toda a existência:

- Nalus! Trifan! Eu ordeno que se juntem a mim!

Nenhum dos dois tinha ideia do que aquilo significava, mas obedeceram prontamente. Em milhões de bilhões de trilhões de pedaços, ambos se desagregaram e passaram a fazer parte do Espaço e o encontro proposital de cada pedacinho de um com o de outro dourou o céu de fagulhas por incontáveis Períodos, que se juntaram em Eras, que se aglomeraram em Éons até que, por fim, quase tudo ficou escuro.

Ali, Cuzio chamou pelo seu Originador e pelos seus irmãos e não obteve resposta de ninguém. Sentia o Espaço ali, mas como algo e não mais alguém. Seus pares, contudo, não mais percebia; estejam mesclados ou banidos, ele nunca mais teve contato de forma alguma. A sua frente, a infinidade de possibilidades se abriu para o Transformador. Querendo esquecer a saudades que sentia de companhia, renomeou o Espaço como Universo e passou a tratar tudo como seu.

P.S.: agradecimentos especiais ao colega dos Contos Medievais, que, com um e-mail, criou a fagulha para continuar este conto.