quinta-feira, 14 de junho de 2012

Extrema-Unção (parte 1)

O ambiente era escuro, com um ar úmido e pesado que fazia do ato de respirar um desafio. Um rapaz ajoelhado, mãos atadas às costas, tinha uma arma apontada para sua cabeça. A curta distância provavelmente faria a bala abrir apenas um pequeno buraco ao entrar em sua nuca, mas a saída causaria um estrago gigante em seu rosto. As perspectivas não eram boas para Daniel, rendido daquela forma.

É nesse instante que, conforme a cultura popular prega e ele foi capaz de provar, a vida passa diante dos olhos. Daniel se lembrou de sua infância na casa dos avós, os passeios com seus irmãos, o pouco tempo que passara com os pais (que mais trabalhavam do que eram presentes), as três namoradas que teve na vida, o carro que recebeu ao passar no vestibular, a batalha para se formar na faculdade enquanto o câncer de seu avô avançava; finalmente lembrou-se de uma frase que sua avó repetia à exaustão e aparentemente sem motivo: Meu Senhor e meu Deus, eu creio, mas aumentai a minha fé!

Nesta fração de segundo, a recordação pairou sobre sua infância religiosa, a desilusão com as instituições e seu afastamento da espiritualidade, para tristeza de Dona Cristina, mãe de seu pai. E aí, somente aí, ele entendeu o porquê da ladainha silenciosa e diária daquela senhora dos cabelos tão brancos que praticamente o criou. E decidiu repetir, também cochichando e também com fé, aquela força mística que aparece em momentos de desespero: "Meu Senhor e meu Deus, agora eu creio. Aumenta a minha fé!”.

"Para de choramingar, moleque! Eu avisei ao teu pai para não envolver a polícia nisso aqui! Era só pagar quietinho que a gente te entregava, porra!" Após o palavrão, um tiro se fez ouvir. O barulho do corpo ao atingir chão se confundia no meio da confusão de sirenes, gritos, passos de corrida e vozes em radiocomunicadores.

Abrindo os olhos, que haviam sido fechados com força quando o estampido preencheu o ambiente, Daniel viu o corpo de um dos seus sequestradores caído ao seu lado. O buraco à bala acima do olho atestava sua morte certa. Em instantes, diversos policiais romperam os cadeados e trincos das entradas e invadiram o ambiente. Antes de desmaiar, porém, o jovem viu uma sombra humanoide no fundo do galpão fugir do local. Ele poderia jurar que viu asas naquela imagem.

Daniel acordou no hospital cercado por familiares, inclusive seus pais. Ficaria ali em observação por 48 horas para alguns exames, incluindo uma conversa com a psicóloga, afinal passara quase uma semana em posse de seus raptores. Quando as pessoas foram embora e seu pai, que lhe faria companhia durante esse período, foi comprar algo para comer, um enfermeiro entrou no quarto. Homem negro e de porte atlético, mas com um ar bastante sereno e sorriso pacato. Com sua voz intensa, mas falando em tom calmo e baixo, ele desejou boa noite a Daniel.

"Meu nome é Rafael e sou seu enfermeiro deste turno. Se precisar, aperte este botão e virei atendê-lo." Depois de observar os aparelhos e fazer anotações em uma prancheta, Rafael virou-se e disse ao rapaz: "Feche os olhos, por favor. Diga-me: você realmente crê?".

O coração de Daniel disparou, um turbilhão de emoções invadiu seu corpo por um instante tão breve quanto um amém. "Como esse enfermeiro faria tal pergunta, dado tudo o que se passou hoje?!" Contudo, o que se seguiu foi paz. Uma paz imensa preencheu cada membro do seu corpo, cada pelo, cada poro. Lágrimas escorreram de seus olhos e ele conseguiu falar "Sim, eu creio!".

Quando abriu os olhos, todo o ambiente estava muito mais claro. Ao fitar Rafael, Daniel notou que o brilho emanava de sua cabeça, assim como de suas costas dois feixes de luz se projetavam como asas.

"Rapaz, por Ele foi dada a benção a você de nos identificar. Você poderá saber quem somos entre os homens e compreenderá nossa língua antiga. Você agora é um ungido. Viva uma vida de retidão, ande sob as leis de nosso Criador, ajude o próximo e teu lugar ao Seu lado estará seguro. Contudo, como os inimigos já foram o que vocês chamam de anjo, você também saberá identificá-los e eles saberão que você é abençoado. A tentação será grande, mas acredite que Deus é fiel!"

Após o minidiscurso, não que Daniel tenha sido capaz de processar muita coisa, o enfermeiro saiu do quarto e seu pai entrou. Algumas palavras foram trocadas, mas este não perguntou nada sobre os olhos molhados do jovem, imaginando que era natural sua recorrência dado os episódios de violência recente. Daniel preferiu dormir em seguida, para tentar de fato acordar. Desde que o Sol se pusera, nada havia feito sentido. E o astro-rei já estava prestes a retornar aos céus...